Se é verdade que, como titulou um conhecido sociólogo, somos cada vez mais Nómadas do Presente (A. Melucci), a mobilidade assume, como sabemos, significados e representações singulares de acordo com as particularidades de cada percurso na estrada da vida. Refiro-me aqui ao caso de uma viagem programada. Através da Europa, mas com passagem prévia pelas raízes, o meu Chalet da Memória (T. Judd), que deixei lá no Alentejo há mais de meio século e outras que depois se estenderam em rizoma por diversas latitudes, nomeadamente em volta da grande Lisboa, já nos anos setenta.
Desci do alto de uma Coimbra santificada pelo acúmulo de sabedoria, transpondo muralhas em ruinas ou já desfeitas no tempo histórico onde apenas restam escassos fragmentos de memória. Da memória dessas raízes pré-lusitanas. De tão consagrada parece ter-se cegado pelo seu próprio encanto. Sim, na despedida levamo-lo sempre na bagagem porque é nessa hora que, ao transpor o Mondego, a nostalgia irrompe por antecipação no coração de um “coimbrinha”. Não é seguramente o caso.
A descida provisória desse olimpo do saber levou-me a uma etapa ainda relativamente próxima. No espaço, que não tanto no tempo. A etapa dessa passagem à vida adulta onde as vivências do aqui e agora caminham lado a lado com o sentido hedonista de que o tempo parou. Ou seja, naquela idade em que mergulhados na voragem da descoberta da vida, na exploração do novo, construímos ídolos eternizando o efémero e desenhamos, se for o caso, o destino utópico da humanidade. Na vertigem dos entusiasmos e dos sonhos – nuns casos mais egoístas, noutros votados a salvar o mundo –, laboriosamente nos fazemos a nós próprios adultos, sem que disso nos demos conta. De repente, acordamos para a “realidade”. Ou melhor, atingimos outra etapa na representação de nós mesmos.
Sem nostalgia, regresso a Moscavide. Reelaborar nessa memória é o meu contributo para lembrar o que já foi aos que já esqueceram e aos que não eram nascidos. Este antigo bairro operário da periferia oriental de Lisboa tem uma história que está por contar. Nos tempos das fábricas marcantes da zona, eram lugares de referência o Braço de Prata, Cabo Ruivo, a FNMAL ou o Quartel de Beirolas, mesmo ao lado do matadouro onde agora se ergue imponente o Parque das Nações. O bairro permanece igual a si próprio, meio acantonado entre a vaidade modernista virada para a claridade do Tejo, a enunciar a luminosidade da promessa europeia, de um lado; e do outro, a Norte, a ligação ao velho seminário dos Olivais já está cortada pelas vias rápidas que apelam a viagens mais profanas. Mais a Leste, a caminho de Sacavém, onde antes havia um velho quartel, está agora um espaço modernizado, com uma central de policia e grandes superfícies comerciais. Ainda, a Oeste, na fronteira do município de Lisboa, os novos acessos e viadutos não escondem os prédios altos de habitação social, no lugar exato onde no meu tempo fervilhava a agitação sombria das ruelas de barracas e esgoto a céu aberto. Agitação que em 74 ganhou novas cores e desencadeou ativismos inspirados em horizontes revolucionários, mas fundados na miséria anacrónica de que era urgente escapar.
Atravessar a ponte Vasco da Gama é, a seu modo, um caminho marítimo, à escala do Mar da Palha, onde é possível sem esforço imaginar as ninfas camonianas em silhueta sensual a emergirem dos tons azulados do espelho de água em fundo alaranjado, ao cair da tarde por cima do Samouco. Este quadro onírico oferece-se como a miragem ideal que me conduz ao regresso a outras raízes, estas mais profundas, porque é ainda lá – em plena Seara de Vento (M. da Fonseca) alentejana, na zona de Rio de Moinhos, Aljustrel – que, neste exercício de anatomia memorialista, revejo o meu pai, sulcando a terra árida atrás do arado e clamando contra a teimosia de uma mula menos atinada.
Passando ao lado do lugar onde cresci (“O 15”, antigo restaurante à entrada da aldeia atrás referida) sigo pela estrada secundária a caminho de Messejana, onde o extenso olival em monocultura veio substituir a antiga paisagem, em que as searas de trigo conviviam com as velhas oliveiras. A produção intensiva de azeite é hoje a alternativa de emprego para muitos locais, a contrastar com as antigas caminhadas dos grupos de mondadeiras, os trabalhadores à jorna e o ruido das máquinas debulhadoras que há cinco ou seis décadas animavam aqueles caminhos térreos. Esta viagem na memória tem aqui a sua principal referência. Ali, por detrás do “Monte do Reguengo” (e quase por baixo da atual A2) esconde-se a pequena barragem do mesmo nome, agora quase seca, onde recordo as primeiras braçadas de natação com a ajuda de uma boia de cortiça. Mas o apelo do oceano tem também ali as suas origens. Escassas dezenas de quilómetros adiante, passando a ponte sobre o rio Mira, observo as águas atlânticas que me “batizaram” em matéria de praia, justamente naquela localidade a que, em crianças, chamávamos maldosamente a aldeia das três mentiras (vila-nova-de mil fontes), mas que continua luminosa e atrativa nos seus telhados vermelhos, banhada pelas águas límpidas da ampla foz que é na verdade uma praia fluvial-marítima.
Em Odeceixe, regresso aos anos sessenta. Estávamos nos primórdios do turismo algarvio, quando esta localidade era ainda um reduto quase virgem. As casinhas da praia – agora uma das 7 maravilhas, rendida ao turismo – abrigavam sobretudo os apetrechos de pescadores e famílias que sobreviviam das atividades costeiras e onde grassava a pobreza e o atraso, como no resto do país. Hoje essa pobreza atinge sobretudo outros viajantes, vindos do Nepal, da Índia e outros países asiáticos, que dormem amontoados em espaços degradados e assim promovem a florescente agricultura de estufa, num trabalho intensivo e sem direitos que dá suporte à lucrativa exportação dos frutos silvestres, enquanto os locais beneficiam com isso e vivem mais do arrendamento turístico do que da cultura do amendoim ou da batata doce, como naquele tempo.
O Baixo Alentejo atravessa-se agora em pouco mais de uma hora, circulando por estradas onde antes os carros de mulas demoravam dias a percorrer. Também as estradas eram mais estreitas, esburacadas e sem bermas, no tempo em que a figura do cantoneiro era incontornável, chapéu de abas largas e fato de trabalho cinzento, ainda o imagino entretido a tapar um buraco enquanto outros se abriam às dezenas. Sim, na minha infância já os automóveis circulavam velozes por aquela via – a estrada nacional 261 – que era a principal ligação entre a capital e o Algarve e que passava mesmo à minha porta, tornando-a assim numa montra de modelos automóveis, num tempo em que na aldeia havia apenas dois, o do maior latifundiário e o do marido da professora. Ainda revejo os primeiros descapotáveis junto ao café/restaurante. Umas vezes paravam em busca de refrescos, noutras apenas abrandavam, e quando esporadicamente os/as ocupantes acenavam aos miúdos, deixavam-nos embasbacados, a olhar os cabelos louros esvoaçantes das estrangeiras que se perdiam na próxima curva, perseguidos por insondáveis sonhos que a puberdade acalenta. Um desses miúdos fui redescobri-lo há uns anos no Monte da Charneca (próximo de Aljezur), cerca de cinco décadas depois de termos andado aos ninhos no Monte da Amendoeira (próximo de Rio de Moinhos).
Prosseguindo a nossa viagem, contorno com cuidado as “curvas da morte”, pouco depois de Aljustrel, em direção a Beja, lembrando os trágicos acidentes que estas linhas sinuosas, em cotovelo de 180 graus, já provocaram. Talvez porque quando a desenharam não havia maquinaria para atalhar caminho ou porque foi concebida mais para a tração animal do que para os automóveis, o certo é que a mesma estrada lá continua a serpentear, apesar do piso ter mudado de empedrado em paralelepípedo para o alcatrão. Chegado às portas de Beja, torneei a cidade rumo a Serpa, avançando para atingir Espanha em Rosal de La Frontera. (continua amanhã – parte II).