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02-10-2019        Público

Não será mera casualidade que a viagem aqui em questão beneficie de um programa de mobilidade Erasmus+, talvez o maior estímulo à edificação de uma Europa cosmopolita e transnacional. Cerca de dez milhões de pessoas, sobretudo jovens estudantes, já dele beneficiaram e com isso estimularam – ou não – o processo de sedimentação da identidade europeia do futuro. Sabemos bem que é um projeto frágil e com alicerces que evidenciam fissuras preocupantes. Mas todo esse lastro de partilha e novas sociabilidades pode recriar o humanismo que a atual economia global ameaça destruir. Dar continuidade a esses fluxos de intensa mobilidade e convívio internacional através das gerações jovens pode incutir novos valores progressistas como a ecologia, a paz, a justiça e o multiculturalismo solidarista, valores que prometem contaminar as políticas europeístas do futuro.

Assim, prosseguindo a viagem, entrámos em Espanha. Recordo como a controversa ligação ao país vizinho foi representada no imaginário coletivo do nosso país, por força de acontecimentos históricos marcantes para Portugal. Constato, porém, que desses lados pode haver “bons casamentos” e tenho um exemplo disso na família, que inclusive já frutificou. Certamente muitos milhares de famílias transnacionais nasceram dos novos fluxos ibéricos e europeus. No caso em apreço, foram as “andanças” entre a estepe alentejana e a vizinha Andaluzia, a pretexto da proteção das abetardas e cisões ou da redescoberta das danças tradicionais e melodias celtas, que juntaram os protagonistas. E assim esta “aliança” luso-espanhola terminou assinada na terra dos embutidos e das famosas grutas: Aracena. Foi aí que iniciei a etapa seguinte, que me conduziu do Sul de Espanha até à Alemanha (“ex” do Leste) em quatro dias.

As amplas paisagens espanholas, que as suas autopistas – gratuitas – permitem apreciar, confundem-se, por vezes, com a continuidade do meu Alentejo, apesar de a maior amplitude do horizonte transmitir um ambiente mais desértico e seco em várias das regiões desta travessia, em linha diagonal, entre o Sudoeste e o Nordeste. O almoço em Novalmoral de la Mata ocorreu num restaurante com o nome de “Casa do Bacalhau”, que ostenta a bandeira e outros símbolos portugueses, mas onde ninguém fala português. Contornámos Madrid e, cerca de trezentos quilómetros depois, ainda parei por minutos num miradouro que dá acesso a um vale fundo e verdejante onde, do pico mais elevado do planalto, é possível observar diversas espécies de águias e abutres que circulam tranquilos numa linha do horizonte bem mais abaixo do que o ponto de observação.

No centro de Siquenza cruzei-me, num fim de tarde tranquilo e ameno, com a criançada a colorir os parques e os diversos “botecos” a oferecer variadas opções de tapas. Pernoitámos em Pelegrina, uma pequena povoação dos arredores, numa casa de turismo rural virada para as profundezas do vale. Aí, na casa que dois anos antes era gerida por um jovem casal hispano-britânico, encontrei apenas um dos seus membros, que nos informou da separação, coisa comum nos dias que correm. Mas mantêm-se parceiros no negócio da casa que ostenta o nome da filha de ambos, que é, como seria de esperar, mais uma futura cidadã europeia bilingue. Um inglês que saiu do seu país para viver num pequeno “pueblo” no centro de Espanha, onde – segundo ele – a vida e as pessoas são mais autênticas do que em terras de Sua Majestade. Em sua opinião, os tiques “bem-educados” e a simpatia “polite” dos britânicos refletem relações sociais menos humanizadas do que no Sul da Europa. Dir-se-á que é apenas uma opinião. O certo é que, com ou sem “Brexit”, a Europa do futuro continuará debater-se pela união nas suas diferenças e contradições.

No dia seguinte, com mais setecentos quilómetros pela frente, rumámos a Norte e entrámos em França por Irún. O turbilhão do trânsito acentuou-se rapidamente e as autoestradas com “péages” começaram a suceder-se. Em Bordéus, devido a insondáveis razões do GPS, acabámos por entrar na cidade, ficando encurralados ou em passo de caracol durante mais de uma hora. Num momento de stress, temi que se tratasse de uma falha nas coordenadas e estivesse a ser levado para um local errado. Mas não. O destino era Saintes, e foi para lá que seguimos. Tudo parecia certo e conforme o previsto, exceto o facto de no pequeno hotel, que estava aberto, não haver ninguém à chegada. A receção deserta. O número de telefone para ligar não permitiu estabelecer a ligação. E eis que, já à beira do desespero, o santo milagreiro (de Saintes) funcionou. Apareceu então a figura mais curiosa da aventura até ao momento.

Um personagem dos seus sessenta anos, muito agitado, de dorso ligeiramente curvado, todo vestido de branco, traje de trabalho. Pelo aspeto, parecia um enfermeiro ou talvez padeiro, dado que até mesmo os sapatos (uns “croques” brancos) condiziam com o restante vestuário e com o cabelo da mesma cor. Cabeleira abundante e comprida, penteada para trás, a que os seus olhos azuis emprestavam um jeito particular, algo irreverente, que me fez lembrar um Leo Férrer ainda novo e um pouco menos desgrenhado. A simpatia momentânea não escondeu o ritmo apressado de um “trabalhador faz tudo”, dada a azáfama que o absorvia. Resultado seguramente da tendência dominante para a contenção de custos, com consequências nefastas quer nos trabalhadores quer, neste caso, também nos hospedes. Deu-nos a chave e indicou o caminho do quarto. A porta do hotel continuaria aberta (aparentemente por toda a noite). Após as breves e rápidas indicações, o dito funcionário desapareceu de novo. Entretanto, entra um hóspede tardio que me confundiu com o rececionista. Quem está? Quem atende? Vamos procurar, não sei onde se meteu. Esperou até que, de súbito, irrompeu do escuro aquele fantasma branco, que logo informou que não há quartos vagos, ao que o outro saiu com um resignado “bon soir”.

As autoestradas francesas continuaram a cobrar no dia seguinte, até atingirmos Verdun, pequena cidade a Sul do Luxemburgo e já próximo da fronteira alemã. Aí tudo funcionou sem sustos nem surpresas. Ambiente agradável, hotel rodeado de vegetação. No dia seguinte, entrámos na última etapa. Acabaram as portagens francesas e abriram-se as vantagens do livre trânsito. Sem pagamentos e quase sem limites de velocidade, podia-se avançar livremente, não fosse o facto de, sendo uma sexta-feira e aproximando-se o fim de tarde, os engarrafamentos junto aos principais nós das maiores cidades se tornarem preocupantes. Para relaxar, optou-se por uma saída breve das amplas vias e procurámos um parque natural para repouso. Fez-se uma pausa à beira do Reno, num piquenique improvisado, num lugar tranquilo e bucólico. Retomada a marcha, não foi possível evitar outro trecho de ritmo lento e paragens constantes na zona de Frankfurt.

Cheguei ao destino final ainda com luz do dia. À zona Leste da Alemanha, Estado de Turingan, onde a vida política anda agitada e onde a direita mais cresceu nos últimos anos. Uma conferência internacional onde participo tem por lema "The Great Transformation: On the Future of Modern Societies”. Para além de algumas figuras de topo das ciências sociais a nível mundial (Wolfgang Streeck, Luc Boltaski, Klaus Dörre, Michael Burawoy, etc.), o curioso aqui é observar a dinâmica da participação e o entusiasmo do público, à volta de 3000 participantes, na maioria jovem, em torno destes debates, centrados no “pós-crescimento”, na defesa da “economia verde”, no combate às desigualdades, na preservação dos direitos laborais e das minorias, nas atuais lutas climáticas, na denúncia do populismo de extrema-direita, enfim, na renovação do movimento sindical. Em suma, esta Europa de contrastes é simultaneamente marcada por perplexidades e por sinais promissores que podem emergir e travar a onda populista. E isso passa sem dúvida pelo crescente ativismo juvenil que está a desafiar as instituições e a classe política.


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
temas
Alemanha    Europa    Espanha    França    populismo