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25-09-2019        JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias

Artes Europeias no Tempo da Pós-Memória é o tema da sessão do dia 3 de outubro na Culturgest, referido no texto de abertura, numa organização conjunta com o projeto Memoirs, sediado no CES, da Universidade de Coimbra, e financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) - projeto inovador neste texto para o JL apresentado pela sua coordenadora, doutorada pelo King's College, de Londres, investigadora e profa em programas doutorais no CE, titular da cátedra Eduardo Lourenço da Universidade de Bolonha, onde leciona o seminário sobre História da Cultura Portuguesa.

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Nos últimos anos, uma série de acontecimentos e controvérsias inscreveram na Europa o impropriamente chamado "regresso do passado colonial", mais ou menos silenciado desde os tempos das descolonizações, com todos os movimentos populacionais do chamado retorno, de colonos, funcionários, militares das antigas colónias africanas e asiáticas num período que se dilata do final dos anos 50 até meados dos anos 70 do século passado. Era o fim de uma era para a Europa, o princípio de outra. À parte alguns romances e alguns filmes que retratavam a realidade do que tinham sido as guerras coloniais, de Portugal ou de França, por exemplo, ou do retorno fraturante de muitas pessoas, o silêncio foi, praticamente até aos anos 2000, a marca, relativamente a este passado recente europeu.

Hoje, o que vemos na verdade não é o regresso do passado colonial, mas o início do debate entre esse tempo marcado pela dominação colonial, e as relações sociais contemporâneas em sociedades herdeiras desses passados na Europa. Sejam debates sobre a continuidade de um olhar colonial europeu, sobre o reconhecimento público da memória da escravatura e do colonialismo, sobre a discriminação étnico-racial, sobre o lugar da religião e os contornos do secularismo, ou sobre o drama dos refugiados no Mediterrâneo, é sempre o peso da história colonial europeia que é questionado, medido, aferido. Protagonizados pelas gerações seguintes, ou seja, pelos herdeiros desse passado colonial europeu, a maioria das vezes sem memória própria desse tempo que já não viveram, estes são os debates e são eles que hoje tomam a palavra. Hoje os europeus herdeiros dos movimentos políticos e populacionais saídos das descolonizações, são sujeitos e corpos políticos europeus que têm vindo a questionar estas vivências fora e dentro de solo europeu, assumindo memórias e identidades transnacionais e transterritori-ais. A partir das suas experiências familiares e públicas interrogam as histórias contadas na casa europeia e as histórias ocultadas, herdam abjetos de territórios e vidas anteriores, interrogam narrativas museológicas, cujas coleções evocam fantasmas da empresa colonial, revisitam arquivos oficiais e contam essas histórias em livros, filmes, quadros, fotografias, peças de teatro. Nas suas obras denunciam as formas de transferência de memória colonial - subalternidade, racismo, segregação, exclusão, desigualdade, glotofobia - que definem a fratura colonial que caracteriza a Europa. Deste modo colocam sob suspeita os modos, as narrativas e as geografias do humanismo europeu, as suas democracias e as suas práticas perante a barbárie do que foi o colonialismo e do que são ainda hoje as suas heranças.

VIVEMOS ESSA TENSÃO, MAS HÁ TAMBÉM SINAIS que nos revelam uma atitude política de integração dessas heranças na nossa reflexão de cidadãos europeus, uma reflexão capaz de, a partir daí traçar outros horizontes, traçar futuro. O desenhar da história desse futuro tem sido o trabalho de investigação do projeto europeu

Memoirs - Filhos de Império e Pós-Memórias Europeias, que, trabalhando com cidadãos e artistas europeus começa a ver e a assinalar esse novo futuro europeu, que é branco, é negro, é árabe, é mestiço, e em que novas vozes se revelam com propostas inovadoras e arrojadas, trazendo novos temas e novas linguagens artísticas que alteram a cultura europeia e são responsáveis pelo seu cosmopolitismo e grandeza cultural. Trata-se de um projeto sobre a diversidade da Europa contemporânea, e seu principal objetivo é entender os desafios de viver numa Europa pós-colonial. Concentra-se nas memórias intergeracionais dos filhos e netos daqueles que viveram os dias agonizantes do colonialismo, das lutas pela independência e do processo de descolonização das antigas colónias africanas da Bélgica, França e Portugal: República Democrática do Congo, Argélia, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.

O caráter inovador do projeto surge de suas questões fundamentais de pesquisa, nunca feitas em escala europeia: Como se deu, na Europa atual, a transferência de memórias do fim do colonialismo nas suas múltiplas dimensões? Qual o impacto cultural e artístico dessa memória latente na Europa contemporânea?

Memoirs tem vindo a construir uma resposta abrangente para as suas perguntas de pesquisa entrevistando descendentes de segunda e terceira geração de ex--colonizadores, ex-combatentes, ex-colonizados que vivem em França, na Bélgica em Portugal e através da análise das suas representações artísticas em quatro áreas: artes visuais, literatura, artes performativas e cinema. A análise de mais de 160 entrevistas - 85 com artistas - nos três países, o trabalho de campo de observação de mais de 200 atividades artísticas nos três países, a leitura de múltiplas obras, o acompanhamento dos eventos políticos e os debates dos últimos anos - com comunidades académicas, ativistas e artistas - mostram-nos a relevância das questões de pesquisa do projeto na Europa contemporânea e revelam-nos o conhecimento acumulado no projeto Memoirs como uma ferramenta importante para entender os vínculos entre as relações sociais contemporâneas europeias e o seu passado colonial, tanto do ponto privado, e portanto individual e familiar, como do ponto de vista público, através da intervenção artística. As entrevistas que realizamos não são apenas momentos de recolha de dados para o projeto. São intensos momentos de partilha, e consciencialização do sujeito entrevistado sobre o sujeito social e político europeu que ele constitui e de como a sua história se integra na história no seu país e na história europeia. Nesse sentido, são momentos de gestação de conhecimento partilhado, de capacitação e de exercício de cidadania europeia. São momentos em que o direito á memória se revela como um elemento essencial para a construção de uma democracia inclusiva e de melhor qualidade. No trabalho com os artistas, o diálogo que a entrevista constitui, é também um espaço de análise crítica das suas produções e muitas vezes de planificação de novas criações.

É assim que na discussão contemporânea sobre situações pós--coloniais europeias, a dimensão da memória e da pós-memória - a memória das gerações seguintes -adquire maior relevância política e marca uma forte presença nos discursos artísticos europeus contemporâneos convidando-nos a construir uma democracia e uma Europa com memória. Nestas novas propostas, ainda pouco conhecidas do grande público, vislumbram-se os contornos e a energia de um renascimento. Nelas está contida a gestação de uma oportunidade de um futuro, mais igualitário, mais democrático e mais pacífico.


 
 
pessoas
Margarida Calafate Ribeiro



 
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Projeto > MEMOIRS
 
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