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18-08-2019        Público

Os clássicos ‘Homo economicus” e ‘Homo sociologicus’ estão a sofrer profundas mutações na era da digitalização. Chegou o advento do ‘Homo digitalis’.  Desde os primórdios da modernidade que a inovação tecnológica e as suas implicações sociais são motivo de reflexão e controvérsia. Perante o avanço da revolução digital ressurgem antigos paradoxos e novas perplexidades. Entre a utopia e a distopia, para além dos prognósticos contrastantes, o futuro permanece enigmático. Num texto célebre de início dos anos sessenta, os autores interrogavam-se recorrendo a metáforas poderosas: “Poderá um peixe adaptar-se a viver em terra?” À partida, a resposta era óbvia – “impossível!” –, mas, e se esse peixe pudesse dispor de uma racionalidade, técnicas sofisticadas, laboratórios e um conhecimento cibernético avançado? Nesse caso, talvez a metamorfose se tornasse verosímil. Estávamos em 1960 e o mundo assistia às primeiras incursões na era espacial. Cientistas da biofísica e da psiquiatria dedicavam-se ao estudo da cibernética e teorizavam sobre o advento do «Cyborg» no campo da astronomia. A noção pretende expressar a conjugação homem-máquina, em que sistemas homeostáticos integrados seriam capazes de resolver problemas automaticamente, sem recurso à consciência, “deixando o homem livre para explorar, criar, pensar e sentir” (“Cyborgs and space”, Clynes & Kline, 1960).

Num outro plano, mais próximo de nós, pensadores “pós-estruturalistas” e “pós-modernos” (Lacan, Derrida, Foucault, Deleuze, etc.) diagnosticaram a “morte do sujeito”, embora, paradoxalmente, numa época em que se assistia à rápida multiplicação de “sujeitos” e movimentos socioculturais (feminismo, pacifismo, ambientalismo, LGBTs, etc.), perante a extinção do “hipersujeito histórico” da sociedade industrial (o velho proletariado). Nesta linha de pensamento, é a própria noção de sujeito racional, filho da modernidade, a sua capacidade reflexiva e o poder da sua consciência como motor da história, que estão em causa. Concorde-se ou não, com este paradigma emergem as noções de fluidez e hibridez, a dinâmica dos fluxos e circuitos, concebendo-se a possibilidade de uma segunda “natureza”, induzida pela tecnologia. Enquanto a ideia do «Cyborg» nega a homogeneidade do humano, a filosofia do “pós-modernismo”, nomeadamente com a metáfora do «Rizoma» (Deleuze & Guattari) pretende substituir saberes e racionalidades substantivas por “linhas de fuga”, “narrativas”, interconexões entre superfícies de conhecimento. Dito de outro modo, é a intensidade das correntes discursivas, da energia e do movimento, que reverte os indivíduos em meros pontos de passagem, interligados por redes em aceleração, expressão de uma “sociedade líquida”, em permanente desconstrução, inclusive a da própria identidade dos sujeitos e coletividades que a compõem.

Estas teses são questionáveis, mas a cibernética e a linguagem digital ajudam-nos a interpelar desafios de um futuro que já está entre nós, pois a era da robótica e da inteligência artificial vem colocar novos desafios. Com a evolução da biotecnologia, da manipulação genética, os novos fármacos, próteses, transplantes, etc., surge toda uma variedade de inovações que acrescentam artificialidade ao natural e mostram como a «biologia», na sua conceção tradicional, cede cada vez mais perante o progresso da tecnologia. As novas técnicas de clonagem, os avanços da robótica, do digital e da “inteligência artificial”, etc., obrigam-nos a questionar: “onde acaba o humano e começa a máquina?”; ou antes: “onde acaba a máquina e começa o humano?”.

Não só o natural e o artificial se tornam indistintos, como há cada vez mais exemplos em que o último suplanta o primeiro – os transplantes, a inseminação artificial ou a mudança de sexo são exemplos disso. As teorias feministas foram das primeiras a encarar o assunto. Como assinalou uma conhecida socióloga dessa corrente, “as dicotomias entre mente e corpo, animal e humano, organismo e máquina, público e privado, natureza e cultura, homens e mulheres, primitivo e civilizado estão, todas, ideologicamente em questão” (Donna Haraway, “Simians, Cyborgs and Women”, 1991). Nesta perspetiva, a metáfora do “Cyborg” ajudou a desconstruir velhas ideologias e crenças enraizadas, tais como o patriarcado e outras formas de discriminação. Ao questionar estereótipos e dogmas autojustificados, contribuiu para enfrentar assimetrias de poder social, e designadamente a ancestral subalternização da condição feminina, abrindo novas possibilidades emancipatórias para diversos segmentos marginalizados ou excluídos.

Mas a revolução digital apoia-se em forças mais tangíveis. O poder crescente das grandes cadeias de negócio e redes globais protagoniza hoje uma luta sem tréguas pela hegemonia. De um lado, as empresas de Silicon Valley, como a Google, Apple, Facebook e Amazon (o chamado grupo GAFA), usam os meios digitais e o monopólio das principais redes informáticas para perseguir as “pegadas” dos incautos consumidores — por exemplo, desenhando perfis de clientes e formatando as suas escolhas. De outro, as novas empresas chinesas do campo digital, como a Baidu, Alibaba e Tencent (o grupo chamado BAT), sob coordenação estratégica do Estado chinês, disputam com os rivais americanos os mercados emergentes, ao mesmo tempo que aperfeiçoam sistemas de vigilância capazes de observar ao detalhe a vida privada de milhões de cidadãos.

Em todo o mundo, o imenso potencial tecnológico em marcha arrasta consigo um leque de consequências sociais e psicológicas impossíveis de vislumbrar. A combinação entre o capitalismo global, o neoliberalismo e a digitalização parece desenhar diante de nós um sistema social cada vez mais mercadorizado, mas onde a autonomia dos indivíduos se vê cada vez mais confinada. Em rigor, a “escolha racional” nunca passou de um mito. Mas agora trata-se simplesmente de fabricar racionalidades consentâneas com os produtos e serviços disponíveis no mercado. Por um lado, promove-se e estimula-se a iniciativa individual na crescente dependência das tecnologias digitais; por outro, anula-se ou constrange-se fortemente a emergência de novos sujeitos coletivos que se oponham ao sistema ou que nele pretendam abrir brechas para novas utopias. Apoiando-se no marketing multidimensional das redes digitais, a exploração do potencial cliente dá lugar à sua fabricação em massa. Com a ajuda decisiva de sofisticados softwares destinados a vigiar, passo a passo, os nossos gestos diários, definem-se segmentos de clientes com padrões de gosto específicos e devidamente moldados para receber cada novo produto que as grandes marcas lançam no mercado. 

E neste processo são os próprios indivíduos – a aposta nas camadas mais jovens não é acidental – que se tornam os principais lubrificadores do sistema. As nossas faculdades sensoriais e modelos comportamentais estão a ser alterados sem que disso nos apercebamos. Alucinados nesta vertigem coletiva, seduzidos pelo brilho e afabilidade dos gadgets que transportamos no bolso, guiados por estímulos e rotinas que nos evadem do mundo real, perdemos o sentido da cadeia comunicacional ou da busca do conhecimento. Diversos estudos têm revelado que a dependência dos aparelhos, a crescente viciação no dedilhar, a infinita panóplia de ícones, aplicativos animados e plataformas, estão a induzir mutações impressionantes nos esquemas cognitivos dos jovens e adolescentes. 
Perante esta imensa voragem comunicacional e informativa, o ser humano esgota-se na busca incessante da informação, num esforço exaustivo e sem alvo definido, mas incapaz de consolidar conhecimento. Em suma, o «Homo digitalis» corresponde à imersão do indivíduo no mar de fluxos e equipamentos digitais que penetram e dominam a nossa identidade pessoal. Na aparência, o mundo e o conhecimento estão no bolso de cada um. Na realidade, esta inebriante iconografia digital parece anular o cidadão, ao mesmo tempo que promove a clonagem massificada de consumidores alienados.

 


 
 
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Elísio Estanque