Como qualquer democrata sincero que o tenha lido, senti-me ofendido com o artigo racista, xenófobo e discriminatório, intitulado «Podemos? Não, não podemos», que Maria de Fátima Bonifácio assinou a 6 de julho no diário Público. Pelo seu significado político, no sentido amplo do termo, tendente a exacerbar ódios e incompreensões num tempo já de si tenso e conturbado no que respeita à aceitação da diferença étnica e cultural, mas também por se escudar numa credibilidade académica que lhe dá alguma autoridade e, por isso, o torna particularmente perigoso.
Porém, a verdade é que nem será preciso um grande esforço para constatar que até esta credibilidade é colocada em causa pelo artigo em questão: a referência à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão «decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789», considerando-os excludentes em relação a grupos humanos, nomeadamente a «africanos» e a «ciganos», é um erro histórico clamoroso. Na realidade, o texto-chave da história contemporânea aprovado em Paris, pela Assembleia Nacional Constituinte, apenas cinco semanas após o episódio revolucionário decisivo que foi a Tomada da Bastilha, refere expressamente o caráter universal e igualitário desses direitos. Observados sob uma perspetiva ocidental, é certo, mas que sob a influência dos princípios iluministas e das ideias da Revolução Americana se pretendiam aplicáveis a todos os seres humanos.
Referências expressas a uma suposta superioridade cultural ocidental e branca, bem como ao caráter «inassimilável» de certos grupos étnicos por comparação com outros, ideias de igual modo presentes no artigo de Fátima Bonifácio, onde são apresentadas com um sentido absoluto, são também inaceitáveis no domínio de um conhecimento histórico e antropológico aberto e atualizado. A sua posição académica – questionável também, aliás, em vários outros dos seus rancorosos artigos de opinião, cujo móbil sempre retrógrado inquina a lucidez e perverte a lógica argumentativa, ainda que esta se apresente envolvida numa pesada ganga professoral – acaba até por reforçar a estratégia antidemocrática na qual se inclui e que procura divulgar junto dos leitores.
A polémica que logo irrompeu abrangeu, inevitavelmente, a ressurgência do debate sobre se determinadas opiniões devem ou não ser combatidas ou mesmo silenciadas numa sociedade democrática. Um conjunto de figuras públicas apresentou mesmo uma queixa-crime contra a professora e cronista, enquanto a opinião mais conservadora ou de direita condena aquilo que vê como uma tentativa censória, vendo em Fátima Bonifácio uma vítima do «politicamente correto». A situação criada conduz-nos a um problema recorrente para o qual vale a pena olhar com atenção.
A livre expressão de opiniões divergentes é a alma da democracia. Ao invés, calar é sinal de medo e o silenciamento uma forma de opressão, componente primária de todas as ditaduras. A censura é um dos seus elementos decisivos, de onde a importância de combatê-la, garantindo as constituições democráticas a pluralidade que esta rejeita. Todavia, existe um espaço de defesa do Estado de direito e das sociedades pluralistas no qual a absoluta liberdade pode e deve conter exceções: quando em seu nome se visa destruir a própria democracia, ou quando incentiva ao crime, como aconteceu no caso em apreço. Se ninguém duvidará que não é «liberdade de expressão» justificar o roubo ou o assassinato, também o não é propagar o racismo, a xenofobia, a desigualdade e o ódio social, como o fez a autora do artigo em questão. Por isso, o que escreveu não pode ser visto como legítima opinião e encarado com um encolher de ombros.