O século XXI tem sido particularmente insistente na exigência de pedidos de desculpa por crimes, atrocidades, violências e crimes cometidos no passado mais ou menos longínquo no contexto do colonialismo europeu. Por vezes, os pedidos de desculpa são acompanhados pelo pedido de reparações ou indemnizações. Em 2004, o governo alemão reconheceu a atrocidade cometida contra o povo da Namíbia, o genocídio de 65.000 pessoas de etnia herero que se tinham revoltado contra o colonizador em 1904. Em 2018, o governo da Namíbia exigia o pedido formal de desculpas e a reparação financeira pelo mal cometido, o que foi recusado pelo governo alemão. Em 2008, em visita à Líbia, o primeiro ministro da Itália, Sílvio Berlusconi, pediu formalmente desculpa ao povo líbio pelas “feridas profundas” causadas pelos trinta anos da colonização italiana e prometeu um investimento de 5 biliões de dólares como compensação. Pouco tempo depois, a Líbia era invadida e destruída pelas “forças aliadas”, de que fazia parte a Itália. Em 2014, a comunidade dos países das Caraíbas aprovou uma proposta da Comissão de Reparações no sentido de se conceder justiça às vítimas do genocídio, escravatura, tráfico de escravos e apartheid racial considerados pela Comissão como crimes contra a humanidade. A proposta era dirigida aos principais países escravocratas na região: a Holanda, a Inglaterra e a França. Era uma proposta muito ampla que envolvia um vasto plano de acção: perdão formal, repatriação, programa de desenvolvimento dos povos nativos, instituições culturais, saúde pública, erradicação do analfabetismo, programa de promoção dos conhecimentos africanos, reabilitação psicológica, transferência de tecnologia. Em 2015, em visita à Jamaica, David Cameron, então primeiro ministro do Reino Unido, excluiu qualquer possibilidade de reparações. Dois anos antes, o mesmo David Cameron, em visita à Índia, reconhecia que o massacre em 1919 de 1000 indianos desarmados que protestavam contra o colonialismo britânico tinha sido “profundamente vergonhoso”, mas nem pediu formalmente desculpa, nem acedeu a pagar indemnizações. Pressionado por uma acção judicial, o Reino Unido acedeu, em 2013, a pagar 2600 libras a cada um dos 5.000 quenianos, integrantes do movimento Mau Mau, presos e torturados na década de 1950 pela sua resistência contra o colonialismo britânico, e a “lamentar sinceramente” o sucedido. Mais recentemente, ao assinalar os quinhentos anos da colonização do México, o presidente António Manuel López Obrador solicitou ao rei de Espanha e ao Papa que pedissem formalmente desculpa pelas atrocidades cometidas contra os povos indígenas durante o período colonial, comprometendo-se a fazer o mesmo enquanto descendente dos colonizadores. O pedido foi terminantemente recusado pelo Estado espanhol; o governo autónomo da Catalunha, no entanto, apressou-se a reconhecer os abusos, as mortes de milhões de pessoas e a destruição de culturas inteiras cometidos pelo colonialismo espanhol. Mais recentemente ainda, a 4 de Abril de 2019, o governo belga pediu desculpa aos “mestiços belgas”, milhares de crianças filhas de pai belga e mãe congolesa, nascidas no final da colonização belga (entre 1940 e 1950), que foram retirados às famílias e internados compulsivamente em orfanatos e por vezes enviados para a Bélgica.
Qual o significado deste movimento de justiça histórica que, aliás, se tem vindo a ramificar e que inclui hoje o pedido de devolução dos objectos de arte trazidos (a que título?) das colónias europeias e exibidos nos museus do Norte global e a devolução de terras, por exemplo, no Zimbabué e mais recentemente na África do Sul? Os argumentos jurídicos ou éticos num ou noutro sentido não parecem adiantar muito. Obviamente, não se trata de encontrar razões para responsabilizar as gerações actuais dos países colonizadores pelos crimes há muito cometidos. O problema é político e emerge em resultado de um conjunto de factores, dos quais o mais importante é a coexistência da independência política com a continuidade da dependência colonial. As lutas de libertação colonial na América Latina (século XIX) e na África e Ásia (século XX) tinham por objectivo fazer justiça histórica, devolver os territórios aos seus povos e permitir-lhes construir um futuro próprio. A verdade é que nada disso aconteceu, como ficou patente da maneira mais dramática na primeira libertação colonial, a do Haiti, em 1804. As condições impostas aos escravos libertados para superar o isolamento internacional a que foram submetidos foram brutais (tão brutais quanto as condições de ajustamento estrutural que o FMI continua a impor impunemente no Sul global) e o resultado está bem patente no Haiti de hoje. A continuidade da dependência colonial foi denunciada brilhantemente em 1965 por Kwame Nkrumah, primeiro presidente do Gana, ao cunhar o termo neocolonialismo, uma realidade tão vigente então como hoje. A pilhagem dos recursos naturais que caracterizou o colonialismo continua hoje, levada a cabo por empresas multinacionais do Norte global com a cumplicidade das elites locais que, no caso da América Latina, são descendentes dos colonos. A reclamação da justiça histórica não é mais que uma forma adicional de legitimar a luta contra a injustiça e a desigualdade que continuam a caracterizar as relações entre os países centrais e os países periféricos. E quando a resposta se traduz em meros pedidos de desculpa, sejam eles aceites ou não, não passam de rituais legitimadores de quem os exige ou aceita para que tudo continue na mesma. Ou seja, o colonialismo não terminou com as independências políticas. Terminou apenas o colonialismo de ocupação territorial por potência estrangeira. Mas continua hoje sob outras formas, algumas delas mais brutais que as do colonialismo histórico. Tal como a escravatura continua hoje sob a forma vergonhosa do “trabalho análogo ao trabalho escravo”, para usar a terminologia da ONU, o colonialismo continua hoje, não só na forma da dependência económica, como também na forma de racismo, xenofobia, apartheid racial, brutalidade policial contra a juventude negra, islamofobia, “crise dos refugiados”, “guerra contra o terrorismo”, assassinatos de líderes sociais em luta pela defesa dos seus territórios contra a invasão das empresas de mineração, de extracção de madeira ou de agricultura industrial, desastres ambientais contra populações descartáveis, vivendo em lugares assumidos como “zonas de sacrifício”, etc., etc.
No caso da América Latina, em que as independências foram conquistadas pelos descendentes dos colonizadores, a continuidade do colonialismo assumiu uma forma específica: o colonialismo interno a que foram submetidos os povos indígenas e os povos de matriz africana, descendentes de escravizados. Os “modelos de desenvolvimento” dos últimos 150 anos ignoraram sistematicamente os interesses, as aspirações e as culturas destes povos. Se López Obrador insistir numa qualquer variante destes modelos não pode surpreender-se se os povos indígenas lhe exigirem, em vez de desculpas, o respeito efectivo pelas suas culturas e territórios, o abandono de megaprojectos e de políticas neoextractivistas uma vez recusados pelas populações, depois de previamente consultadas de modo informado e de boa fé. Ao solicitar desculpas ao colonizador e ao comprometer-se e ao seu governo no mesmo processo, López Obrador traz algo de novo à polémica sobre a justiça histórica. Assume a estatura de uma sinceridade trágica no sentido da tragédia grega. Move-se num fio de navalha que o pode desequilibrar para a queda no próprio gesto de se levantar. Sabe talvez melhor que ninguém que representa hoje o máximo de consciência social possível de um modelo de desenvolvimento de vocação anti-social porque destinado a criar rentabilidades que em grande proporção irão para aos bolsos de interesses capitalistas globais. Sabe que o capitalismo de hoje, dominado pelo capital financeiro, só aceita negociar os termos da pilhagem se a pilhagem não for posta em causa. Sabe que, com uma ou outra variante, este modelo fracassou noutros países da América Latina em tempos muito recentes (Brasil, Argentina, Equador, Venezuela). Tem a norte um muro imperial, vergonhoso, demasiado sólido para se derreter com o sangue de quem por ele tenta passar. Está nele depositada a esperança que resta num continente dilacerado pelo imperialismo norteamericano e europeu com a cumplicidade das elites locais que nunca toleraram que as classes populares, los de abajo, sonhassem com o fim do colonialismo. Nestas condições, quem é responsável pela esperança é também responsável pela frustração. A resposta do rei de Espanha não foi um bom presságio. Mas também é verdade que de um rei de nada não se pode esperar tudo.