O processo de Bolonha - a unificação dos sistemas universitários europeus com vista a criar uma área europeia de educação superior - tem sido visto como a grande oportunidade para realizar a reforma da universidade europeia. Penso, no entanto, que os universitários europeus terão de enfrentar a seguinte questão: o processo de Bolonha é uma reforma ou uma contra-reforma? A reforma é a transformação da universidade que a prepare para responder criativamente aos desafios do século XXI, em cuja definição ela activamente participa. A contra-reforma é a imposição à universidade de desafios que legitimam a sua total descaracterização, sob o pretexto da reforma. A questão não tem, por agora, resposta, pois está tudo em aberto. Há, no entanto, sinais perturbadores de que as forças da contra-reforma podem vir a prevalecer. Se tal acontecer, o cenário distópico terá os seguintes contornos.
Agora que a crise financeira permitiu ver os perigos de criar uma moeda única sem unificar as políticas públicas, a fiscalidade e os orçamentos do Estado, pode suceder que, a prazo, o processo de Bolonha se transforme no euro das universidades europeias. As consequências previsíveis serão estas: abandonam-se os princípios do internacionalismo universitário solidário e do respeito pela diversidade cultural e institucional em nome da eficiência do mercado universitário europeu e da competitividade; as universidades mais débeis (concentradas nos países mais débeis) são lançadas pelas agências de rating universitário no caixote do lixo do ranking, tão supostamente rigoroso quanto realmente arbitrário e subjectivo, e sofrerão as consequências do desinvestimento público acelerado; muitas universidades encerrarão e, tal como já está a acontecer a outros níveis de ensino, os estudantes e seus pais vaguearão pelos países em busca da melhor ratio qualidade/preço, tal como já fazem nos centros comerciais em que as universidades entretanto se terão transformado.
O impacto interno será avassalador: a relação investigação/docência, tão proclamada por Bolonha, será o paraíso para as universidades no topo do ranking (uma pequeníssima minoria) e o inferno para a esmagadora maioria das universidades universitários. Os critérios de mercantilização reduzirão o valor das diferentes áreas de conhecimento ao seu preço de mercado e o latim, a poesia ou a filosofia só serão mantidos se algum macdonald informático vir neles utilidade. Os gestores universitários serão os primeiros a interiorizar a orgia classificatória, objectivomaníaca e indicemaníaca; tornar-se-ão exímios em criar receitas próprias por expropriação das famílias ou pilhagem do descanso e da vida pessoal dos docentes, exercendo toda a sua criatividade na destruição da criatividade e da diversidade universitárias, normalizando tudo o que é normalizável e destruindo tudo o que o não é. Os professores serão proletarizados por aquilo de que supostamente são donos - o ensino, a avaliação e a investigação - zombies de formulários, objectivos, avaliações impecáveis no rigor formal e necessariamente fraudulentas na substância, workpackages, deliverables, milestones, negócios de citação recíproca para melhorar os índices, comparações entre o publicasonde-não-me-interessa-o-quê, carreiras imaginadas como exaltantes e sempre paradas nos andares de baixo. Os estudantes serão donos da sua aprendizagem e do seu endividamento para o resto da vida, em permanente deslize da cultura estudantil para cultura do consumo estudantil, autónomos nas escolhas de que não conhecem a lógica nem os limites, personalizadamente orientados para as saídas do desemprego profissional.
O serviço da educação terciária estará finalmente liberalizado e conforme às regras da Organização Mundial do Comércio. Nada disto tem de acontecer, mas para que não aconteça é necessário que os universitários e as forças políticas para quem esta nova normalidade é uma monstruosidade definam o que tem de ser feito e se organizem eficazmente para que seja feito. Será o tema da próxima crónica.