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26-01-2019        As Beiras

A história dos últimos anos da oposição ao Estado Novo não pode ser feita sem ter em conta o movimento estudantil e, dentro deste, sem mencionar os acontecimentos que tiveram lugar em Coimbra durante a «crise académica» vivida entre Abril e Julho de 1969. A perfazer agora meio século, esta configurou um momento crítico da vida portuguesa daquela época, marcando para sempre o país, a cidade, a sua universidade e quem a viveu. Tendo sucedido numa fase de relativa abertura do regime – em plena «primavera marcelista», um tempo de esperanças rapidamente goradas –, representou, para toda uma geração de universitários, uma parte inesquecível das suas biografias pessoais e uma escola de política e de democracia. Ao mesmo tempo, ajudou a sacudir um sistema político decrépito que cinco anos depois iria ruir com estrondo.

É preciso, no entanto, reconhecer que a «crise de 69» não foi, de modo algum, um começo ou o fim de percurso. Quem conhece a história da sociedade estudantil coimbrã – e existem hoje já muitos e bem fundamentados estudos sobre o seu trajeto, para além das memórias pessoais disponíveis –, sabe que ele começara muito antes. Estava presente já na intervenção disruptiva da Geração de 70 e depois na atividade do movimento republicano, vindo de seguida a preencher um importante papel nas longas décadas de oposição à ditadura e a Salazar. Particularmente a partir de 1961-1962, foram surgindo e impondo-se no meio estudantil formas práticas de resistência política, social e cultural, apoiadas na oposição organizada, mas também na afirmação de uma nova voz juvenil, cosmopolita e plural, emergente na cultura inconformista dos «anos sessenta». Esta foi ampliando as fileiras democráticas, estando na origem do ambiente social efervescente que gerou e alimentou a «crise».

Ocorria então a transformação gradual de uma atividade estudantil sobretudo associativa e reivindicativa, ainda algo corporativa, numa outra, já na forma de movimento, que passou a exigências de natureza mais ambiciosa e mais assumidamente política, voltadas para a contestação do próprio regime. Foi isto que de seguida aconteceu em Coimbra com a forte politização do movimento desenvolvida a partir de 1971. Foi entre este ano e o 25 de Abril de 1974 que se ergueu um movimento de contestação, agora assumida e frontal, do regime e da Guerra Colonial, envolvendo setores que iam dos católicos progressistas e do PCP a uma hiperativa esquerda radical e libertária, que finalmente chegaram os ecos culturais e políticos do Maio de 68, que se operou uma rápida revolução nos costumes, gostos e práticas culturais, que se construiu um movimento estudantil diversificado e cada vez mais poderoso, com uma presença crescente das mulheres e uma aproximação ao movimento operário, apesar dos esforços do regime ao fechar o edifício da Associação Académica e ao agravar dramaticamente a repressão sobre os estudantes, muitos espancados pela polícia, muitos presos pela PIDE e torturados.

A «crise de 69» constituiu, por isso, um momento de transição e viragem. Por um lado, teve ainda uma natureza reformista, apostada em exigências vagas e relativamente «suaves», como o direito das organizações estudantis a serem ouvidas em matérias do seu interesse e a defesa de um ensino menos rígido, menos elitista e mais adequado a um país em mudança. Por outro, permitiu uma politização que abriu as portas à radicalização dos anos que se seguiram e contribuiu para a queda do regime. Por isso, é falsa a mitografia da «crise de 69» que a apresenta como momento isolado e único. Mas é justa a sua interpretação como tempo de consciencialização política de numerosos estudantes e professores, bem como de muitos habitantes da cidade e do país que viram na bravura de tantos rapazes e raparigas de Coimbra capazes de pôr os interesses pessoais ao serviço do coletivo o sinal de que, como lembrava The times they are a-changin’, a canção de Bob Dylan saída em 1964, os tempos estavam a mudar.


 
 
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Rui Bebiano



 
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