Como se sabe, a primeira fase de construção democrática do pós-25 de Abril foi marcada por intensas lutas sociais, mas o princípio da cogestão colegial nos órgãos de governo das universidades cumpriu uma ambição mais antiga do associativismo académico. A democracia portuguesa muito deve a esse legado de lutas e movimentos estudantis. Contudo, quer nas universidades quer fora delas, a institucionalização democrática rapidamente evoluiu, sobretudo a partir da década de 80, para uma lógica de burocratização e pulsão corporativista, que acompanhou a abertura do ensino superior às classes média e trabalhadora. Uma abertura que, no caso português, de tão apressada rapidamente deu lugar a um modelo de gestão que de democrático passou a tecno-burocrático. Muitos dos protagonistas de então diagnosticaram o “excesso” de democracia e passaram a olhar a nova “massa” estudantil como gente alienada e incapaz de assumir responsabilidades no governo das universidades. Entretanto, a chegada de novos contingentes de estudantes e a concorrência de instituições privadas de ensino superior criaram clivagens profundas entre os dois setores (público e privado), ao mesmo tempo que a atração das famílias pelo campo universitário se baseava mais na busca de títulos de status do que numa real vocação para a formação científica (ou cultural) avançada.
Tudo isto parecia refletir um paradoxo em que, de um lado, a democratização do acesso se consolidava e o velho elitismo se esbatia, mas, de outro, as universidades mostravam grandes dificuldades em se adaptar à nova realidade. Um novo público estudantil começara a exigir processos de ensino e pedagogias mais abertas e democráticas, enquanto a produção científica e a ligação à sociedade (com maior ênfase no mercado de trabalho) se assumiam como as grandes prioridades da Universidade. Foi a partir dessa realidade, num momento em que se consolidava uma estratégia nacional para a ciência e a tecnologia (mas inspirada nos apelos da globalização), que começou a expandir-se o novo paradigma da “eficácia”, e com ele a premência dos rankings, das agências de avaliação e a imposição de um modelo produtivista de ciência. Ao abrigo de forças poderosas como sejam as orientações do Banco Mundial e do FMI, os outputs das universidades e departamentos foram forçados a adaptar-se a esta lógica, ao mesmo tempo que a quantidade de estudantes e de programas de pós-graduação aumentavam exponencialmente. Pode dizer-se que com isso as tendências de abertura e democratização do acesso ao ensino superior se confundiram com um clima de massificação, levando a que a qualidade e os níveis de exigência cedessem o passo ao facilitismo, à sombra de uma duvidosa formação dita “em banda larga”, com a generalização da superficialidade na maioria dos cursos de 1.º ciclo. É nesse sentido que falar de “massificação” significa não tanto uma generalizada presença de estudantes oriundos das classes subalternas, mas sim uma tendência de nivelamento por baixo e de competição individual baseada mais na instrumentalização consumista e na atribuição de certificações e diplomas (sem falar das próprias culturas estudantis que vão no mesmo caminho) do que numa efetiva aposta na “excelência”, não obstante toda a retórica dominante.
Passados mais de dez anos de vigência do RJIES (Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior), é tempo de se repensar as suas consequências. Ao longo deste período, os modelos de governação das universidades mudaram substancialmente e o resultado mais visível disso, a par de uma gestão de recursos mais controlada e restritiva, foi o forte estímulo ao centralismo e, portanto, a compressão da democracia interna de que é exemplo a eleição do reitor por um grupo restrito de “supereleitores” (os membros do Conselho Geral). O modelo colegial, a cultura participativa e o espírito crítico, outrora inerentes ao ambiente académico, viram-se cada vez mais constrangidos. A opção fundacional, prevista nessa lei, revelou-se uma falsa solução, como tem sido reconhecido pelos próprios reitores, com a agravante de assumir toda a concentração de poderes no Conselho de Curadores. Para além da redução da autonomia nos planos financeiro e institucional, também a liberdade pedagógica foi afetada negativamente pelo novo modelo, para mais agravado porque a sua implementação coincidiu com o período de austeridade e o seu impacto destrutivo sobre os diferentes corpos da academia.
Nem sempre a quantidade é inimiga da qualidade. Mas seguramente que formar com os mesmos níveis de exigência largas centenas de milhares ou escassas dezenas exigiria um amplo reforço de meios e recursos. Se a democratização implicava necessariamente a chegada de milhares de jovens oriundos das classes média, média-baixa e classe trabalhadora (com escassos recursos educacionais e culturais), então adivinhava-se a necessidade de pedagogias mais eficazes e porventura de outros conteúdos culturais e cívicos no ensino básico e secundário. Para que a qualidade se mantivesse no ensino universitário seria necessário, de duas uma: ou a assunção de que a “formação superior” passasse a ocorrer no nível de mestrado (cinco anos letivos); ou promover uma profunda revolução nos métodos de ensino, com recurso a uma pedagogia mais ativa, inovadora e intensiva, de modo a proporcionar a desejada qualidade formativa na conclusão dos cursos. Como não se verificou nenhum desses requisitos, assistiu-se a uma banalização de diplomas, enquanto a seletividade passou a incidir ao nível das pós-graduações (mestrados, MBAs, doutoramentos, etc.) e dos estabelecimentos de ensino, segundo os respetivos rankings e potencial de empregabilidade no mercado de trabalho.
Importa, por outro lado, lembrar que a democratização do acesso deveria estar vinculada a um desenvolvimento socioeconómico sustentado. O problema é que tal projeto coincidiu com a crescente rendição do modelo social europeu aos apelos da globalização neoliberal, e isso repercutiu-se perversamente em países periféricos como Portugal. Daí resultou que a “qualidade” das instituições e o “sucesso” das políticas dos países-membros da UE – baseados em métricas e critérios quantitativos minuciosos – dependessem diretamente das novas agências de avaliação internacionais. Nesta linha, os cantos de sereia da globalização e da revolução informática tiveram como reverso a inevitável submissão do serviço público à lógica de mercado, ou seja, colocando as universidades públicas sob o peso de sucessivos cortes e restrições orçamentais, perdendo espaço e condições para garantir elevados padrões de qualidade. Entretanto, quer a autonomia universitária, quer a representatividade democrática dos diferentes corpos nos órgãos de governo têm vindo a ser objeto de forte pressão, enquanto a “abertura à sociedade” se tornou sinónimo de profissionalização generalizada dos cursos superiores. Acresce que, se entendermos a autonomia não como um critério meramente formal/financeiro mas como um garante de liberdade e democracia interna, é fácil concluir que ao longo da última década as perdas foram maiores que os ganhos em qualquer desses itens.
A Universidade é sempre o reflexo da sociedade em que se insere. Por isso, os fenómenos mais arreigados nos costumes de uma sociedade estão tanto mais presentes no seio da Universidade quanto mais esta se torne aberta à influência externa. Só assim se compreende que os ancestrais vínculos tutelares tão típicos da cultura portuguesa se tenham transferido para os ambientes universitários a um ritmo crescente. Quando o alargamento deixou de ser acompanhado da renovação do corpo docente, quando o ambiente colegial regrediu e as novas gerações se viram cada vez mais confrontadas com o espectro da precariedade e o bloqueio das carreiras, é o futuro da Universidade que está em risco. Impõe-se, portanto, um virar de página que recupere a cultura crítica, a democracia interna e fortaleça o conceito de serviço público no ensino superior.