O modo como decorreu a visita do presidente chinês Xi Jinping merce um comentário. Não por ter corrido segundo os princípios da diplomacia e da hospitalidade, ainda mais natural quando a China é uma potência mundial de primeira grandeza com forte e antiga relação com Portugal. Esta é hoje ampliada com a atividade de empresas e investidores chineses e com a presença de um número considerável, cerca de 42 milhares e a crescer, de imigrantes originários da China Continental, Hong-Kong, Macau e Taiwan. É também significativo o número de estudantes universitários chineses em Portugal, existindo neste campo importantes acordos e programas de mobilidade entre os dois Estados. Manter uma ligação regular e cordial com Pequim é, pois, do interesse do país. Todavia, algo aconteceu por estes dias que não deveria ter acontecido.
De facto, a forma submissa que pautou o modo como as autoridades portuguesas acederam aos ditames da diplomacia chinesa sobre como deveria decorrer a visita, em particular no campo do protocolo e da segurança, bem como a maneira visivelmente aduladora e maravilhada como a generalidade dos meios de comunicação social descreveu e comentou o momento e as suas circunstâncias, justificam reparos. A tendência não é só portuguesa, sem dúvida, pois o fascínio por parte de muitos governos, partidos democráticos e analistas pelo crescimento desmesurado da economia chinesa é global, mas foi esta a vez de a nossa soberania lidar de forma direta com a situação.
Sob múltiplos aspetos, convém recordar, o antigo Império do Meio – Zhong-guo, como durante séculos a China se autodesignou, refletindo uma perspetiva sinocêntrica que colocava toda a Ásia como sua tributária – combina hoje, de um modo aparentemente paradoxal, o lado mais agressivo e concorrencial do capitalismo com aspetos que traduzem o pior do autoritarismo e da rigidez das experiências do «socialismo de Estado» do século passado. Esta não pode ser uma situação com a qual se lide como uma inevitabilidade, dado entrar frequentes vezes em conflito com direitos humanos fundamentais e com o próprio equilíbrio entre Estados e economias, diante dos quais o crescimento chinês não pode surgir como vaca sagrada que apenas justifique admiração.
O retrato divulgado do crescimento da economia, e também o do progresso de uma classe média que dele usufrui, é muito parcial. Do lado do capitalismo, há a concorrência agressiva e desleal no plano internacional, a prática costumeira da espionagem industrial e da contrafação, a exploração dos trabalhadores com horários brutais, a deslocalização de empresas e serviços, a ausência de sindicatos, a inexistência de legislação socialmente inclusiva e de uma proteção efetiva do trabalho e da reforma, como é normal pelo menos em boa parte da Europa. Do lado do «socialismo de Estado» deparamos com um sistema de partido único, a inexistência de estruturas democráticas funcionais, uma censura feroz que inclui a vigilância sistemática da Internet, a repressão policial à menor manifestação de descontentamento, a engenharia social que coage milhões de trabalhadores e minorias a deslocar-se, o culto do trabalho como pauta da existência.
Ambos os lados deveriam ser encarados pela nossa imprensa, no mínimo, como vertentes que justificam um olhar crítico e uma atitude de reprovação, e pelos governantes e partidos como fatores de alguma moderação do entusiasmo. Mas não, ao invés foram ignorados por troca com o extasiado fascínio de quem espera que nos possam cair no bolso algumas migalhas na forma de yuan. Como se, neste caso, vivêssemos todos sob o nefasto efeito da síndrome de Estocolmo: aquele que a psicologia estuda como o processo, ocorrido em casos de rapto, de identificação do sequestrado com o seu sequestrador.