Os últimos anos têm sido marcados pelos sucessos eleitorais, em várias regiões do mundo, de projetos autoritários protagonizados por partidos e movimentos que defendem posições de extrema direita, racistas, xenófobas, sexistas e homofóbicas, e de demonização e criminalização dos setores mais vulnerabilizados da sociedade. Uma característica comum desses movimentos é a utilização crescente de novas formas de comunicação digital, como o Twitter ou o WhatApp, que permitem o acesso direto ou via trolls e bots a milhões de eleitores/as, sem passar pelos meios de comunicação social convencionais, como a imprensa ou a televisão, ou pelos fóruns de debate organizados durante as campanhas eleitorais, que, com todas as suas limitações, permitiam o confronto presencial dos projetos e propostas de quem se candidata a cargos políticos.
O uso das novas plataformas para a disseminação e proliferação de notícias e informações falsas, trivializadas sob a designação de fake news, tem conseguido, com assinalável sucesso, alimentar a erosão da democracia representativa e do debate político na esfera pública. Mas essa erosão não é explicável apenas pelas estratégias de comunicação digital dos novos populismos. Ela articula-se com, e é consolidada pelas tentativas de silenciamento ou supressão da crítica e das manifestações de dissidência intelectual, política, cultural e social. Por isso, antes e depois de chegarem ao poder, os novos populismos multiplicam os ataques a intelectuais, artistas, jornalistas, professores, investigadores, estudantes e ativistas de movimentos sociais. Nesse processo, as universidades e os que nela trabalham – professores, estudantes, investigadores, funcionários – tornam-se alvos preferenciais a abater ou a desacreditar.
Entre as instituições mais atacadas pela ofensiva autoritária no Brasil, desde o processo de destituição de Dilma Rousseff em 2016, encontram-se precisamente as universidades. Ao longo do último século, e desde a declaração de Córdoba, na Argentina, que em 2018 formulou o projeto de uma universidade ao serviço de projetos de construção nacional, assente nos três pilares da produção de conhecimento, do ensino e formação e da extensão, a instituição universitária tem passado por transformações profundas e contraditórias. Entre a adesão à lógica neoliberal, com a crescente dependência de financiamentos privados e da subordinação a uma lógica produtivista e de criação de valor e as lutas pela autonomia universitária e pela afirmação da instituição com espaço de criação e ciência, de saber e de cultura, de liberdade de ensinar e aprender e de exercício do pensamento crítico, muitas universidades têm contribuído para a construção de espaços de produção e criação colaborativa e solidária de transformação emancipatória da sociedade. Em momentos de crise da democracia, como aquele em que nos encontramos, as universidades têm sabido organizar espaços e iniciativas de resistência e de afirmação da liberdade de pensamento e de crítica.
No Brasil, durante o período pré-eleitoral e a própria campanha, multiplicaram-se, em universidades federais e estaduais, os cursos, palestras, encontros e manifestações pela democracia, abrindo espaços de debate que contrastavam com o insólito desaparecimento dos debates públicos entre candidatos e entre os projetos políticos em presença. Um grande número de universidades foi alvo, durante a campanha eleitoral, de intervenções policiais, respaldadas por decisões de membros do poder judiciário, sob pretexto de que debates sobre a democracia e o fascismo ou sobre a história contemporânea do Brasil constituiriam formas ilegítimas de propaganda eleitoral em favor de um candidato ou em prejuízo de outro. Conferências sobre o fascismo ou cartazes que proclamavam simplesmente “Mais livros, menos armas” foram assim censurados como podendo prejudicar um dos candidatos, enquanto as fake news contra o candidato Fernando Haddad continuavam a proliferar perante a impotência ou inação das autoridades e da justiça eleitoral.
Uma outra, e significativa, vertente do ataque às universidades, às escolas e aos profissionais da educação é o de projetos como o da Escola Sem Partido – um projeto de supressão da diferença e do rigor crítico em nome de um alegado combate à “doutrinação” -, ou a chamada, pelo próprio presidente eleito, à delação de professores e de alunos alegadamente culpados de praticar essa “doutrinação”. Assim se abre o caminho para a imposição de versões oficiais de conteúdos e práticas, suprimindo a memória histórica, criminalizando o pensamento crítico e a liberdade de ensinar e aprender enquanto pilar de uma educação que não se confunda com doutrinação, adestramento e promoção do conformismo.
Criminalizar o pensamento e promover a delação como uma virtude destrói a possibilidade de educar para a cidadania, para a democracia e para a solidariedade. A escola seria assim transformada numa máquina de produção de conformismo, de ignorância, de preconceito, de medo, e de celebração da delação e do ódio à diferença.
Contra essa transformação, a defesa e promoção da democracia exige escolas e universidades que formem cidadãos capazes de exercer as suas faculdades críticas, de produzir e partilhar conhecimento em todas as áreas, de contribuir para a promoção da igualdade e o reconhecimento da diferença, de praticar uma cidadania solidária. Por isso é tão importante a solidariedade e o apoio a todas e todos que lutam por defender, com as suas tensões e imperfeições, os lugares de pensamento crítico e de educação democrática que resistem aos projetos autoritários.