Manhã de 14 de Outubro. Depois da madrugada devastadora devido a passagem do Leslie levantei-me, examinei rapidamente o ambiente doméstico e o circundante, através das janelas: nada de anómalo. Procurei notícias nos sites oficiais. IPMA, Proteccão Civil, nada de muito actualizado, diga-se. Os sites nos quais se acede com credibilidade às notícias locais, de Coimbra e da Região, tinha informações que também datavam ainda da noite anterior, não consegui nada de novo. Por razões de funcionalidade, ou seja, de tempo, não utilizo as designadas redes sociais. Fui então zapear os canais de notícias. Como sempre havia directos do Porto e de Lisboa, um ou outro de Peniche. Mas também foram divulgados alguns números, avassaladores diga-se, para o "Distrito de Coimbra". O canal público de notícias passava em rodapé "Lisboa foi menos devastada que o previsto pelo furacão Leslie" e, logo de seguida, "Mudança de planos na Moda Lisboa". Confesso que fiquei então um pouco afectado. pois o principal certame de moda e de glamour na corte foi prejudicado pela tragédia atmosférica. Mas fiquei muito satisfeito. porque a capital não sofreu tanto como se podia temer.
Fiquei mais alguns minutos a ver se davam notícias mais próximas, nada. Pelo menos no canal público de notícias.
Preocupado que estava com o estado do velho edifício onde trabalho, meti-me no carro e dirigi-me para lá. Pelo caminho fui percorrendo um cenário próximo do pós-catástrofe, tal era o número de árvores derrubadas, ramos soltos, postes quebrados e cabos aéreos caídos. Não consegui chegar exatamente ao local, pois a rua estava justificadamente fechada pela Proteção Civil que removia árvores e ramos sob o olhar e as fotos dos poucos turistas que passavam naquela hora. Percorri a pé o caminho que me restava e passei uma grande parte da manhã a fazer o reconhecimento dos estragos no edifício onde trabalho. Os danos eram, de igual modo, devastadores.
Tal como há um ano atrás escrevi neste mesmo jornal as catástrofes que assolam este país, quando se dão fora das áreas metropolitanas, não são mapeadas. Talvez não sejam mesmo mapeáveis, no sentido em que não interessa a ninguém mapeá-las. Aquilo a que a televisão de Lisboa, com o seu sotaque característico, designava por "Distrito de Coimbra" corresponde a uma entidade meio abstracta que talvez até (quem sabe?) represente umas terras perdidas algures entre o interior, pelo qual nutrem agora uma enorme compaixão, e o inóspito mar que se espraia por oitocentos quilómetros de costa. É uma heterotopia. É algo que foge aos "centros" onde toda a "realidade" é processada, onde a nossa identidade faz sentido, ou seja, onde nos podemos reconhecer como portugueses. Fora disso, a televisão de Lisboa (e esta expressão é obviamente uma figura de estilo) tem dificuldade em entender como é possível alguém "ainda" aqui estar sedeado. Talvez tenha razão. Talvez seja mesmo teimosia nossa.
Escrevi há cerca de um ano atrás, a propósito dos incêndios florestais, numa circunstância ainda mais dramática, que deixava a esperança que, para além da dicotomia forjada entre o "litoral" e o "interior", se pudesse também assumir que há uma região. Uma região deprimida, pobre e desestruturada, mas uma região. Uma regiam com centralidade e com voz própria. Até aqui, quer queiramos quer não, quase todos os responsáveis, no plano político e/ou mediático, a têm visto como um território que serve de passagem entre duas cidades.
Hoje, porém, e num território que também é assolado pelos ciclones, devo dizer-vos que essa esperança não é incondicional, nem inesgotável.
Resta-me, enquanto autóctone deste território heterotrófico (situado algures entre as duas metrópoles (entre Portugal e Portugal. portanto), transmitir-vos que estou muito feliz porque afinal Lisboa não foi tao devastada pelo Leslie como tinha sido previsto. Embora não possa deixar de dizer-vos que estou também um pouco entristecido, uma vez que o ModaLisboa, o mais importante certame de divulgação do "nosso" design, foi perturbado pelo ciclone.
Mon coeur balance.