Dois comentários de especialistas em Saúde Global publicados na passada semana na revista The Lancet, uma das mais influentes publicações médicas do mundo, trazem novos elementos para a reflexão sobre as alegadas virtudes das parcerias público-privadas no campo da saúde, desta vez à escala global.
Em janeiro de 2018, no Forum Económico Mundial de Davos, o recém-designado diretor do Fundo Global para o combate à SIDA, Tuberculose e Malária anunciava a celebração de parcerias entre o Fundo e várias empresas privadas e instituições financeiras. O Fundo foi criado em 2002, para financiar o combate a doenças tratáveis que afetam e matam sobretudo populações do Sul global. Apesar de tensões em torno das estratégias a seguir e do modo como os fundos deveriam ser utilizados, houve alguns importantes avanços, em particular, no combate à SIDA e a doenças associadas a esta. Foi disponibilizado tratamento antirretroviral a muitas pessoas afetadas, graças em particular à ação de profissionais, ativistas, movimentos sociais e alguns governos e organizações não-governamentais, para ultrapassar as resistências baseadas em cálculos de custo-benefício que postulavam a prevenção sem tratamento, o elevado preço dos medicamentos praticado pelas empresas farmacêuticas e a persistência de preconceitos e estereótipos culturais e raciais herdados da dominação colonial.
As novas parcerias, com a Unilever, a Heineken e o banco Lombard Odier, permitiriam mostrar, segundo um dirigente desse banco, que os investidores já não têm de escolher entre “fazer o bem” e “sair-se bem” – financeiramente, entenda-se. Ou seja, as parcerias seriam novas oportunidades de negócio para os parceiros do setor privado. Acontece que o Lombard-Odier, já antes da parceria com o Fundo, se tornara conhecido pelo seu envolvimento numa série de problemas, escândalos e irregularidades financeiras em vários países ao longo dos últimos anos... Este caso serve para nos lembrar que parcerias com instituições financeiras e interesses privados, independentemente da escala - local, nacional ou global – em que se realizam, tornam o setor da saúde vulnerável às práticas próprias dos “modelos de negócio” adotados por esses parceiros e às suas consequências, especialmente quando elas são submetidas às regras de funcionamento e de gestão próprias do setor privado. Os conflitos de interesse são um sintoma de um confronto persistente entre o reconhecimento da saúde como um direito humano e a captura da saúde pelo capital, como um espaço de novas oportunidades de negóci. Os sistemas públicos de saúde financiados pelos cidadãos através do orçamento do estado ou de fundos disponibilizados por estados ou organizações multilaterais constituem um apetecido terreno para a subordinação de um setor fundamental da vida social à lógica do mercado e da concorrência, que privilegiará sempre a procura de resultados económicos sobre a proteção e promoção da saúde – como se lia num recente documento do banco de investimento Goldman-Sachs, “curar doentes” não é um “modelo de negócios sustentável”...
Desde a aprovação, em 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Constituição da Organização Mundial de Saúde, consgarando a saúde como um direito humano, a defesa e promoção desse direito através da universalização dos cuidados de saúde e da garantia de condições para uma vida saudável foram inscritas nas constituições de diferentes países, como Portugal, o Brasil ou a África do Sul. Afirmava-se assim o direito a cuidados de saúde acessíveis independentemente da capacidade financeira, classe, género, orientação sexual, raça ou etnia, religião ou lugar de residência, garantido por serviços públicos de qualidade e com cobertura universal e gratuita. O estado social que marcou a era pós-Segunda Guerra Mundial na Europa foi uma das formas de realização desse ideal, de que é exemplo, em Portugal, o Serviço Nacional de Saúde.
No mesmo sentido, há precisamente 40 anos, em Alma Ata, no Cazaquistão, realizou-se uma Conferência Internacional que tinha como lema “Saúde para todos no ano 2000”, definindo como prioridade o acesso do conjunto da população mundial a cuidados primários de saúde de qualidade. Os compromissos assumidos nessa conferência foram confrontados, desde então, por interesses que promoveram a ideia de cuidados de saúde seletivos, diferenciados em função da capacidade financeira das populações, comunidades e pessoas que a elas recorriam. Acompanhando os programas de ajustamento estrutural, as intervenções em saúde no plano global, e em particular nos países do Sul global, foram reorientadas para programas verticais, financiados por doadores e sob controlo destes, dirigidos a problemas de saúde específicos – como a SIDA, malária ou tuberculose -, sem conferir prioridade à construção e fortalecimento dos serviços públicos e dos saberes e práticas locais de cuidado.
No mês de outubro, em Astana, de novo no Cazaquistão, nova conferência, no quadro dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, terá como lema a Cobertura Universal de Cuidados de Saúde. Será mais uma arena do combate solidário pela afirmação do direito humano à saúde, no Norte como no Sul. A luta pela defesa dos serviços públicos de saúde contra o assalto neoliberal é, literalmente, uma luta pela vida, contra a morte prematura, a doença e o sofrimento, pelo acesso aos cuidados, pelo direito a uma vida saudável, pelo reconhecimento dos saberes e práticas de cuidado que garantem a defesa da vida e de uma existência digna.