A maior ameaça para a democracia começa quando os agentes da política desprezam os valores e os ideais, esgotando-se na gestão do poder pelo poder. O que vulgarmente se designa pela “contagem de espingardas”, isto é, saber-se atempadamente quem está com quem, é, desde há muito, uma prática dos grupos organizados e suas lideranças para definirem as táticas mais adequadas para atingirem os seus fins. No caso dos partidos, durante décadas ou séculos esse requisito foi acompanhado pela busca constante de aperfeiçoamento da retorica argumentativa capaz de mobilizar vontades e apontar o caminho adequado à execução de um programa político, em geral fundado num ideário e num desígnio que procura responder aos anseios das bases sociais de apoio e, no fundo, aos problemas da sociedade no seu conjunto. Desde a Grécia clássica até um período recente que se conhecem as armas dos demagogos. A nossa I República forneceu inúmeros exemplos disso. Ora, o problema é que hoje parece assistir-se ao emergir de uma nova modalidade de ação coletiva onde o trabalho de consciencialização se torna supérfluo ou se circunscreve a círculos muito restritos. Reaparecem novas fórmulas em que o poder de comando não precisa de justificação, e ganham adeptos.
As ciências sociais há muito que discutem a natureza complexa e paradoxal do comportamento humano. O triunfo da racionalidade nunca significou a omnipresença do pensamento lógico, já que as pulsões e atitudes do individuo perante o coletivo obedecem a componentes emocionais e afetivas, mais do que a uma ponderação calculada de cada ato. Mesmo a reflexividade, quando existe, é da ordem intersubjetiva. A linguagem e a sua relação com a mente humana foram desde há mais de um século objeto de grandes controvérsias por parte de filósofos como F. Saussure, L. Wittgenstein ou N. Chomsky, mas a ideia da comunicação enquanto mensagem trocada entre seres plenamente racionais revelou-se um mito. Jürgen Habermas apontou as condições ideais de comunicação em que a força de um argumento pode ser decisiva. Porém, as condições do contexto — conforme mostrou a psicologia social, com S. Moscovici — interferem sempre no processo de construção do consentimento em que uns indivíduos se colocam na plena dependência de outros. Já não se trata da demagogia nem da retórica discursivas, é antes o próprio poder simbólico que produz a submissão. Assim, a eficácia dos mecanismos de manipulação através da linguagem deriva do facto de a maioria dos agentes abdicar do contraditório, preferindo a proteção confortável da tutela do mais forte. Quem domina a linguagem controla o poder, mas quem está no comando pode impor a sua vontade através da gestão do silêncio. É isso que podemos designar por “política do vazio” (Lipovetsky, A Era do Vazio). Ou seja, não há discussão, nem valores éticos, nem confronto de ideias, mas o caráter político da ação continua presente nas suas consequências.
Sabemos por outro lado, com a historiografia dos regimes autoritários (veja-se M. Mann, Fascistas), que as bases sociais do fascismo assentam em aspetos como o nacionalismo, estatismo, xenofobia e paramilitarismo. Esses foram elementos que no passado não muito distante serviram de estímulo aos movimentos fascistas e nazi, ao apresentarem-se inicialmente como ideias alternativas, ou seja, uma “3.ª via” em oposição ao liberalismo e ao socialismo (embora incorporando a defesa de direitos laborais e de alguns princípios comunistas ou socialistas). Igualmente importantes na génese desses movimentos foram as experiências paramilitares, fundadas na ideia de comunhão, companheirismo e numa cultura machista, elementos que se perpetuaram em diferentes experiências de violência armada como resposta às crises que devastaram os países europeus na sequência da I Guerra Mundial. Não foi apenas a crise económica que motivou a emergência de tais movimentos, pois também os países escandinavos foram atingidos pela crise e conseguiram ultrapassá-la porque a sociedade soube preservar a defesa do sistema democrático, ao contrário do que se passou na Itália e na Alemanha, favorecendo a ascensão da “onda” nazi-fascista. Michael Mann não deixa de alertar que o fascismo foi o primeiro movimento político a exaltar a juventude, dada a sua apologia do ideário do novo, da ação e em especial da violência, um apelo que nos anos 20 e 30 do século passado atraiu legiões de jovens do sexo masculino para as suas fileiras, inclusive em Portugal, com Rolão Preto.
A expansão recente dos movimentos populistas — e partidos de extrema-direita — ocorre numa sociedade que parece exausta de redes comunicacionais, onde paradoxalmente as pessoas comuns (ainda que com elevado capital educacional) se afastam da atividade intelectual e do debate de ideias. O discurso populista que tem vindo a grassar no Ocidente apoia-se na primazia da imagem e da sedução performativa sobre os conteúdos das propostas ou as ideias dos líderes candidatos ao poder. A principal característica do populismo já não é propriamente um “discurso” mas uma espécie de “meta-narrativa” em que as adesões funcionam mais com base no exemplo prático, suportadas pelo falso carisma de “alguém como nós” (veja-se o exemplo de Donald Trump) e que expressa as frustrações recalcadas do cidadão vulgar ou do trabalhador manual desencantado com a política convencional.
Mudando a escala, vale a pena pensar a este propósito nos nossos jovens. Mesmo deixando de lado, por agora, a massa da juventude estudantil — que se dedica alternadamente ao estudo e à diversão hedonista, mas foge de tudo o que possa confundir-se com política ou partidos —, centremo-nos por momentos naqueles setores que, sendo embora minoritários, se interessam pela vida politico-partidária, e que em geral começam a dar os primeiros passos a caminho das “jotas” nos meios do associativismo académico. É certo que esta realidade não é generalizável. Mas apesar das minorias ativas de jovens que estão a revitalizar os movimentos sociais e partidos políticos (o nosso Parlamento é disso um exemplo), a “política do vazio” é um fenómeno larvar que tende a crescer na sociedade portuguesa (apesar de sermos, por ora, uma exceção na Europa no que respeita a forças de extrema-direita).
O que é particularmente revelador e inquietante no mundo do associativismo estudantil é que ele obedece cada vez mais ao princípio do poder pelo poder. Explicando melhor: quem tem qualidades de liderança (leia-se, afirmação de força), em geral reconhecidas quase instintivamente pela “plebe”, pode aperfeiçoar os seus talentos de autoritarismo junto dos núcleos de acólitos que se mostram disponíveis para seguir cegamente as suas ordens. O fenómeno da “Baleia Azul” é talvez uma expressão excessiva dos riscos inerentes ao uso acéfalo das redes sociais, fenómeno revelador das recentes inclinações de jovens e adolescentes em obedecerem às “ordens” de quem esteja nas funções de “comando”. Observa-se nos meios universitários que a construção de grupos organizados começa muitas vezes no ato de receção do caloiro e em ambiente de praxe académica, onde evidentemente emerge a figura do “padrinho” como símbolo de um “poder paternal” inquestionável e, à sombra de ritualismos mais ou menos humilhantes, estreitam-se os sentimentos de pertença/solidariedade num coletivo humilhado e obediente. É nesse contexto que se desenrolam as lógicas identitárias que alimentam o seguidismo e o caciquismo, fatores que regem a estruturação de correntes de apoio mais tarde arregimentadas para candidaturas e “sindicatos de voto” completamente controláveis.
Dir-se-á que se trata de fenómenos antigos e que sempre existiram. Podem ter existido no passado, mas num tempo em que as instituições democráticas funcionavam e ofereciam à sociedade os necessários contrapesos. Creio que já não é esse o caso. Por isso a questão ganha hoje contornos tão preocupantes, pois começam a estar em risco os princípios mais elementares da democracia e da política. Enquanto esta se esvazia (no seu sentido mais nobre), o resultado não deixa de ser politicamente perigoso. É esse o perigo da “política do vazio”.