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28-02-2018        JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias

A Europa moderna inventou as fronteiras, no sentido em que as conhecemos hoje, como delimitações precisas entre países. Foi uma das muitas invenções que depois exportou para o mundo que colonizou, a culminar na Conferência de Berlim de 1884-85 e na partilha de África com régua e esquadro. Contraditoriamente, foi também a Europa que na época moderna advogou a ideia do mundo sem fronteiras: o universalismo, o cosmopolitismo, o princípio kantiano da hospitalidade universal e as suas propostas de cidadania mundial ou de federação global de Estados, ou ainda a ideia da república universal mais tarde defendida pelos anarquistas. Esta contradição entre um mundo sem fronteiras e um mundo sulcado por fronteiras vem desde o início da modernidade europeia. Pode ser ilustrada com a defesa do direito de livre comércio de Francisco de Vitoria (1492-1546) em De Indis et de Jure Belli Relectiones (1532), por um lado, e, por outro, os monopólios comerciais e consequentes conflitos sobre a divisão do mundo, bem visíveis pela primeira vez no Tratado de Tordesilhas de 1494 entre o Reino de Portugal e o Reino de Castela.

Tal contradição talvez nunca tenha sido tão visível como hoje. Dois dos grandes poderes globais que controlam as nossas vidas mais do que podemos imaginar não conhecem o conceito de fronteira. Refiro-me à internet e ao capital financeiro. Mas, por outro lado, o drama dos migrantes e dos refugiados nunca foi tão sério, tanto pela população que envolve como pelo sofrimento e injustiça que revela. Perante isto, devemos revisitar o conceito de fronteira, o modo como se fazem e desfazem fronteiras, e interrogar a fronteira como um campo social, uma forma de sociabilidade.

O conceito de fronteira é estável, pelo menos desde o século XVII, e denota uma linha que delimita sem ambiguidades um dado território nacional ou sub-nacional. A precisão da fronteira tem no mapa a sua melhor formulação. A realidade dessa linha é, no entanto, bem mais dinâmica e ambígua. A fronteira pode ser estanque ou porosa, e ser uma coisa para uns e outra para outros, pode ser muro e travessia, barreira e ponte, pode ser reconhecida ou ignorada, pode ser fixa ou mover-se. As fronteiras que os colonos europeus desenharam nas Américas foram quase todas objecto de conflitos (e mesmo de guerras) no período pós-independência, alguns dos quais duram até hoje. Pelo contrário, em África as fronteiras revelaram notável estabilidade, apesar do seu carácter artificial. Mas tanto num continente como no outro, os povos desconheceram muitas vezes essas fronteiras nas suas relações económicas, familiares ou étnicas. Talvez a maior turbulência na realidade da fronteira decorra hoje do facto de a continuidade territorial ter deixado de ser determinante. Países como a Grécia ou a Itália confinam, afinal, com a Síria, o Iraque, o Afeganistão, a Somália, a Eritreia, a República Democrática do Congo. Por sua vez, a Costa Rica confina em parte com esses mesmos países e também com o Haiti e Cuba. E a Costa Rica confina com os EUA, o país de destino dos migrantes em trânsito ou bloqueados na sua fronteira do sul.

Como as fronteiras, territoriais ou outras, nunca são naturais, há que perguntar sobre quem tem poder para construir e demolir fronteiras e determinar para quem elas são muros intransponíveis ou travessias, ou para quem a travessia pode acarretar risco de vida ou ser uma prática trivial. A geografia desigual do acesso à fronteira é o produto do poder que a sustenta. Se tivermos presente os três modos de dominação moderna—capitalismo, colonialismo e patriarcado—e as instituições que regulam e consolidam o poder que por via deles se exerce (Estado, direito, educação), concluímos que as fronteiras são instrumentais e que a densidade simbólica que por vezes revelam (ao ponto de parecerem naturais ou imutáveis) se desfaz no ar, sempre que o exercício e as contradições do poder assim o determinam. A fronteira é sempre o resultado de quem tem poder para responder à pergunta e tirar benefícios da resposta: quem pertence ou somos “nós” quem não pertence ou são “eles”? Vejamos três exemplos. Quando se criou o espaço Schengen entre os países da UE (originalmente cobrindo cinco países e hoje a grande maioria dos países da União), as fronteiras entre os países aderentes quase desapareceram com óbvios benefícios para os seus cidadãos. Mas, em contrapartida, tornou muito mais difícil o acesso à Europa por parte de cidadãos não-europeus. Assim se tornou possível a fortaleza-Europa. O tratado de livre comércio entre os EUA e o México, conhecido por NAFTA, fez crer aos mexicanos que as fronteiras iriam ser abolidas. Pelo contrário, os EUA foram construindo muros e vedações electrificadas, ao mesmo tempo que não cessaram de aumentar o corpo de guardas fronteiriços. Assim foi aumentando os riscos de quem quisesse atravessar a fronteira. As medidas de anteriores presidentes foram reforçadas pelo Presidente Trump com a dramatização da construção do muro, que em parte já existe, e, para cúmulo, construí-la a expensas dos mexicanos. É possível imaginar os mexicanos denunciar o tratado ante tal humilhação? A fronteira mais cruel do nosso tempo é a que separa Israel da Palestina. A sua crueldade expressa-se tanto no monstruoso muro ilegal como nas interacções diárias nos infames checkpoints, os calvários diários da humilhação por que têm de passar os palestinianos enfrentando um poder discricionário para garantir a subsistência.

Nunca tanta gente dependeu tanto das fronteiras e, por isso, a experiência da fronteira tenderá a ser um objecto de análise sociológica cada vez mais importante. Como sempre, os artistas são pioneiros. As fronteiras sempre criaram uma forma de sociabilidade fugaz enquanto lugar de trânsito, bloqueado ou não. Hoje há que vê-las como lugar de passagem e como lugar de permanência. Em ambos os casos, a sociabilidade de fronteira constitui em muitos aspectos a fronteira da sociabilidade. Para quem a fronteira não é uma passagem trivial, a fronteira configura uma situação de extrema concentração de medo e de esperança. A vivência de um e de outra está nas mãos de um poder tão regulamentado quanto discricionário, tão transparente no que decide como opaco nas razões porque decide, tão burocraticamente subserviente como todo poderoso. Os aeroportos são hoje uma metáfora eloquente da desigualdade entre “nós” e “eles”. Para os primeiros, a passagem é trivial e o poder dilui-se na rotina do poder; para os segundos, a passagem é totalmente imprevisível e o poder concentra-se para ser tão excepcional quanto o caso que confronta. Talvez não haja outro lugar onde a hierarquia da mobilidade é tão diferenciada.

Atravessar tanto pode ser o paroxismo da esperança como o paroxismo do medo. É esperança para o migrante que atravessa ou para o refugiado que obtém asilo. Mas é medo ilimitado para os jovens sem documentos que estão a ponto de ser deportados dos EUA, apesar de terem sido trazidos para o país de tenra idade e não conhecerem nenhum outro. E tem sido medo para os que desde o início do século passado foram colectivamente deportados na Europa e estão hoje a ser deportados em Myanmar para garantir a homogeneidade étnica ou religiosa dos países em que nasceram. As sucessivas limpezas étnicas na Europa de leste, nos Balcãs e na Turquia, e a partição da Índia com o Paquistão são testemunhos particularmente cruéis.

A fronteira é hoje, porém, um lugar de permanência, uma permanência sempre transitória, mas que pode durar gerações. É aí que a fronteira se revela como um campo social onde a sociabilidade de fronteira mais se revela como fronteira da sociabilidade. São zonas de fronteira os campos de refugiados que vão crescendo por todo o mundo e que na Europa são particularmente vergonhosos (porque mais contrastante com a vida de quem vive fora dos campos). Aí se vive sem um futuro que não seja a esperança de sair daí. Essa suspensão da vida digna é especialmente dura quando partir ou sair não significa chegar, mas antes passar e continuar a passar. É o caso da fronteira da Costa Rica, para onde a política desastrosa de refugiados na Europa atirou tanto africano. A chegada está longe da Costa Rica, nos EUA, e se chegarem à Guatemala terão de enfrentar o poder mexicano a fazer de stunt norte-americano. O edifício da embaixada do Equador em Londres é uma zona de fronteira onde um trânsito mutante se transforma em permanência para Julian Assange.

São igualmente zonas de permanência as zonas de trânsito em aeroportos, sobretudo quando o trânsito demora mais que o normal. O filme de Steven Spielberg, O Terminal, ilustra bem os jogos de poder possíveis com a passagem do tempo, a ambiguidade de relações, a diluição da distinção entre o íntimo e o estranho, entre a rotina e a surpresa. Mas a situação mais dramática é a das zonas de fronteira em que o trânsito, por ser tão humilhante quanto repetido, transforma a subjectividade de quem o vive ao transfigurar-se num estado mental permanente. Os checkpoints na Palestina são o mais degradante exemplo do nosso tempo. Os cineastas palestinianos são quem melhor tem resignificado esteticamente essa vergonha, tendo criado um género fílmico novo, os roadblock movies.

A imagem do refugiado preso num campo de internamento ou à beira da estrada a comunicar pelo telemóvel com a família ou com os companheiros que ficaram para trás ou vão na frente é a metáfora deste tempo simultaneamente globalizado e localizado, em que o medo e a esperança deixaram de ter a noção do equilíbrio entre eles e, por essa via, tanto destroem a dignidade dos que só têm medo como a dos que só têm esperança. Os primeiros são fantasmas que deambulam nas fronteiras, os segundos são construtores compulsivos de fronteiras até ficarem emparedados na sua infinita e estulta liberdade, fechados em condomínios fechados.


 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos



 
temas
fronteiras    Europa    refugiados