Em Portugal, o último ano ficará na história pela verdadeira explosão do debate sobre o racismo – que permitiu tirar do armário o esqueleto do colonialismo-que-afinal-não-foi-assim-tão-benevolente. À primeira vista, iniciativas como as recentes exposições sobre racismo e a escravatura, ou o crescente interesse público e atenção mediática a estas questões criam a ilusão que o presente debate abrirá caminho para um futuro anti-racista. Mas não, esse futuro ainda não se vislumbra, e nem sequer o presente chegou. Vejamos:
1. Em ano de campanha eleitoral, temos a personagem de André Ventura, candidato da coligação Primeiro Loures (PSD e PPM). Condenado por muitos, é possivelmente apoiado por muitos mais (e não só por Passos Coelho), à direita e à esquerda – segundo o inquérito da Aximage publicado no início do mês. Significativamente, discursa por aí fora sem uma nota de condenação da inoperante Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR). Os media procuram mais racionalizar André Ventura do que desmontar os seus argumentos racistas: é assim que afirmações como “os ciganos vivem quase exclusivamente de subsídios do Estado” e “acham que estão acima das regras do Estado de Direito” passam a ser lidas não como uma expressão do racismo mas como “afirmações polémicas”, colocando o debate no âmbito da discussão sobre a liberdade de expressão. A questão do racismo evapora-se: o público fica sem saber que a percentagem de ciganos que usufrui de subsídios estatais é menor do que Ventura imagina, que a discriminação de pessoas ciganas no sector do emprego é gritante e explicará em grande medida que se recorra ao Rendimento Social de Inserção, que frequentemente não conseguem colocações de emprego depois de frequentarem iniciativas para “promover a empregabilidade”, ou que quando conseguem essa colocação profissional são muitas vezes despedidos quando o patrão descobre que é cigano. Tudo isto revela que os ciganos estão abaixo dos benefícios do Estado de Direito, mas essa informação não passa: há muito a fazer para se iniciar um debate consequente sobre o racismo.
2. A reivindicação de mudanças nos currículos e manuais escolares de história feita por 22 associações de Afrodescendentes às Nações Unidas. A recente resposta do Ministério da Educação? A Educação para a cidadania e a Gestão flexível do currículo. Exactamente a mesma resposta dada há cerca de 20 anos, quando em meados dos anos 1990 emergiu o interesse pela educação em contextos de diversidade cultural. Respostas políticas como estas têm um mero efeito placebo: mantém-se tudo como está enquanto se dá a aparência de um comprometimento político com a mudança. Mais, com a Gestão flexível do currículo o Ministério da Educação acaba por responsabilizar os professores de certas áreas geográficas com “maior diversidade” por incluir outras histórias, em vez de aceitar que é tempo de repensar os cânones do conhecimento e lançar uma discussão pública que mostre que a escola é, efectivamente, de e para todos, e como tal não pode continuar a operar pelo primado das descobertas – ainda que se lhe chame “expansão”. Não estamos ainda perto desse momento.
3. E por falar em “expansão”, não pode deixar de ser referido como se tem banalizado o debate sobre a escravatura e os seus legados. Por exemplo, a recente crónica, António Barreto considera um “preconceito demagógico pedir perdão pela escravatura ou pela exploração de há cem ou quinhentos anos”. Nem vale a pena relembrar que o fim formal do império português teve lugar há pouco mais de 40 anos. E que, uma vez abolida a escravatura em 1878, o trabalho forçado no contexto colonial português só terminou legalmente com a revogação do Estatuto do Indígena em 1961, década e meia depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Com certeza não se consideram descabidas as indemnizações às vítimas do Holocausto, nem tardias as actuais iniciativas pela memória dos seus descendentes. Nem injustificado o pedido de desculpas do Comité Internacional da Cruz Vermelha por não ter assumido um papel mais activo na denúncia do genocídio dos Judeus no Holocausto. Será então de se julgarem normais as indemnizações dos escravocratas, por exemplo, no Haiti? Com a Revolução de São Domingos (1791-1804) contra a armada Napoleónica – a primeira revolução bem-sucedida de populações escravizadas –, quem recebeu compensações não foram aqueles que haviam sido escravizados; o “débito da independência” do Haiti foi cobrado para indemnizar os donos de plantações que haviam tido “perdas” significativas ao ficar sem os “seus escravos” na muito rentável colónia francesa. Portanto, não, o debate não se trata de uma obsessão positivista pelo rigor dos factos e a sua contraposição; ele trava-se no campo político. Vive-se actualmente na Europa um clima de crescente debate sobre o colonialismo e os seus legados, já não só no Reino Unido ou na França, mas também na Alemanha, na Bélgica, na Holanda, mesmo na Dinamarca e agora em Portugal. Perdão, compensações e reparações são alguns dos eixos centrais desta questão. Não dando azo à crítica banal do “politicamente correcto” – a fórmula preferida para trivializar a discussão – é de lembrar a Declaração final da Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância em Durban, patrocinada pelas Nações Unidas em 2001, e que consensualizou que o racismo é um legado da escravatura, colocando as reparações na agenda. Por muito que as elites deste país não queiram, este debate – protagonizado sobretudo pelos descendentes de populações escravizadas e sujeitas ao trabalho forçado – está quase a chegar.