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15-09-2017        Público

Há mais de duas décadas, num diálogo crítico com Michel Foucault a propósito do conceito de poder, Boaventura de Sousa Santos (em Toward a new common sense) considerava inevitável associar tal conceito a constelações e heterogeneidades. Tratando-se de uma relação social regulada por trocas desiguais, o poder seria, assim, sinónimo de hierarquização, caráter distributivo, de inibições e caminhos em aberto, segundo uma repartição por espaços estruturais (do espaço doméstico ao da produção, do mercado à comunidade, da cidadania ao espaço mundial).

De igual modo, já anteriormente (em Sociologie des Organisations) Philipe Bernoux chamara a atenção para a importância do conceito de poder no quadro da “análise estratégica” no seio das organizações. E ao fazê-lo associara o poder tanto uma dimensão relacional como de reciprocidade, tanto a recursos de constrangimento como de legitimidade, tanto a exercícios de “cima para baixo” como de “baixo para cima”.

Como o poder é demasiado complexo para se resumir em poucas linhas, pretendo apenas chamar a atenção para uma das formas de poder indispensável a um eficaz funcionamento das sociedades democráticas: o poder decorrente da posse de saberes e conhecimentos especializados (frequentemente, mas não exclusivamente, validados pelo capital escolar).

O poder dos especialistas está associado à capacidade (que não está ao alcance de todos) para desbloquear problemas (ex: ser cidadão ocidental e dominar o mandarim; controlar uma tecnologia de ponta, etc.). Porém, esse poder especializado não transporta só vantagens. Como adverte Bernoux, um especialista resolve um problema específico sem que isso signifique necessariamente que tenha uma perceção do contexto mais amplo que envolve a sua intervenção. Além disso, o poder do especialista pode ser posto em causa não só pelo cidadão comum (ex: quando se desconfia de um diagnóstico médico e se procura outro especialista) como inclusive por especialistas do mesmo ramo (exs: interpretações diferenciadas da lei por parte de juristas; distintas visões médicas sobre a inevitabilidade da prescrição de estatinas para baixar o colesterol).

A recente luta pelo reconhecimento de um poder de especialistas em saúde materna e obstetrícia por parte de cerca de 2.000 enfermeiros (1.500 dos quais em hospitais do SNS, segundo dados da Ordem dos Enfermeiros), com vista a um reconhecimento de carreira e correspondente atualização remuneratória (desde 2009 a carreira de enfermagem deixou de contemplar o “enfermeiro especialista” e correspondente salário) é um exemplo revelador das dificuldades a que podem estar sujeitos os especialistas. Por sinal agravadas desde que, em julho, a Procuradoria-Geral da República considerou o protesto ilegal, não podendo ser enquadrado numa greve e sendo passível de incorrer em faltas injustificadas.  

Já anteriormente uma greve convocada (de 31/07 a 4/08) por duas estruturas sindicais – em favor da valorização salarial da carreira de enfermagem, em defesa de um regime de trabalho de 35h semanais para toda a classe e em apoio ao movimento de enfermeiros especialistas – fora suspensa para dar lugar a um processo de negociações com o Ministro da Saúde. O insucesso destas desaguou na greve de enfermeiros desta semana.

No caso dos enfermeiros especialistas, não pode causar indignação que, por disporem de formação de especialidade, anseiem ser remunerados por cuidados diferenciados e não por serviços de enfermagem comum. É certo que o envolvimento ou apoio a uma greve ou simplesmente deixar de fornecer um serviço de especialidade (preparar partos, estar em blocos de parto, acompanhar grávidas pós-parto), mediante a entrega de título de especialista na Ordem, são formas de pressão sujeitas a sanções legais. Além disso, geram uma indesejável ansiedade junto de quem se apresta para ser mãe ou acaba de o ser, o que eticamente é questionável. Mas tal modus operandi parece ser o único capaz de pressionar a tutela, o sistema de saúde e sensibilizar a opinião pública. Embora destituídos de um poder legal, os enfermeiros especialistas não deixam de ser portadores de um poder legítimo. E, pelos vistos, com “efeito de contágio” a outras categorias de especialistas: em reabilitação; médico-cirúrgica; saúde infantil e pediátrica.

Num contexto económico de aparente “folga” orçamental, se é lícito aos especialistas do poder (políticos e governantes em geral) fazer do exercício da governação um pretexto para o exercício do poder “a partir de cima” (e às vezes mesmo sem abrir mão das “especialidades” inerentes às lealdades políticas), por que não reconhecer, “a partir de baixo”, o poder de especialistas (seja na saúde ou noutro setor) construído na base do mérito e saber profissional diferenciados?

E note-se que luta pelo reconhecimento de poder dos enfermeiros especialistas não se restringe ao espaço da produção, ao reclamarem um salário que os dignifique e não os explore. É também uma luta no espaço da comunidade profissional de que fazem parte (com outras especialidades e saberes médicos), pois além de quererem afirmar uma identidade, querem superar a diferenciação desigual de que se consideram alvo, por exemplo face aos médicos. E ainda uma luta no espaço da cidadania, ao reclamarem outro tipo de relação com o Estado, menos assente em critérios de dominação vertical e mais no respeito pela condição de enfermeiro-cidadão-trabalhador dotado de valências específicas.  

Em suma, uma busca pela equiparação de especialista a uma verdadeira fonte de poder.


 
 
pessoas
Hermes Augusto Costa



 
temas
especialização    democracia    poder    estratégia    cidadania