Na sua recente viagem pela Europa, Ládio Veron, representante do povo guarani-kaiowá, visitou países como a Alemanha, Itália, Reino Unido e Portugal para denunciar a violência exercida contra os povos indígenas por conta do agronegócio no Brasil.
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O cenário é o Estado do Mato Grosso do Sul, onde as populações indígenas têm sido sistematicamente ameaçadas pela violência à medida que se dilatam os limites do progresso económico, inclusive pelas políticas desenvolvimentistas e neo-extractivistas. Esta história é protagonizada por fazendeiros e latifundiários, milícias e a polícia militar – com a conivência do Estado. Mas também pela inércia da elite política neste processo e a tolerância da sociedade brasileira ao baixo valor da vida indígena. A violência sobre as populações que defendem o seu direito à terra tem sido protegida por sucessivos governos, piorando substancialmente em tempos de Michel Temer – como se viu com a recente criminalização de líderes indígenas, antropólogos e organizações envolvidas em processos de demarcação de terras para deslegitimar este processo de reconhecimento jurídico, ou com a imposição, via decreto presidencial, da proposta do “marco temporal”, que limita o reconhecimento de terras à sua ocupação efectiva em 1988.
Recuemos então um pouco atrás no tempo. Em finais dos anos 1980, foi consagrado no Brasil o direito dos povos indígenas às suas terras de ocupação tradicional para actividades produtivas e para a reprodução cultural dos seus costumes e tradições. Segundo dados oficiais da FunaiI (Fundação Nacional do Índio), existem actualmente 462 terras indígenas regularizadas – territórios de ocupação indígena que cumprem os requisitos técnicos e legais estabelecidos na Constituição federal de 1988 –, sendo inalienáveis e imprescritíveis. A mesma instituição estima que representem, no seu conjunto, 12,2% do território nacional. O processo de demarcação de terras não foi uniforme no tempo, nem no espaço. Por um lado, foram muito menos as terras homologadas pelo PT do que por anteriores governos. De acordo com os dados do Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do Instituto Socioambiental, durante as legislaturas de Dilma Rousseff foram apenas declaradas e homologadas um total de 45 terras indígenas, contra 168 por Lula da Silva e 263 por Fernando Henrique Cardoso. Na verdade, as condições de vida da população indígena agravaram-se em tempos de governos PT: o agronegócio foi incentivado pelos programas de crescimento de Lula e Dilma. Por outro lado, a maioria dos territórios reconhecidos concentram-se na Amazónia Legal. As populações indígenas dispersas em terras de menor dimensão têm tido grande dificuldade em ver respeitado o seu direito à reprodução física e cultural; é esta a situação dos guarani-kaiowá no Mato Grosso do Sul.
Ládio Veron veio apresentar os processos de luta pelo direito à terra e a violação deste direito histórico, colocando em causa a soberania das terras indígenas. Note-se que até as terras homologadas pelo Estado têm sido vendidas a grandes grupos económicos multinacionais para a monocultura de soja, milho e cana de açúcar – também para consumo europeu (segundo dados de 2016, de Las Casas, Bacha e Carvalho na revista História e Perspectivas, o agronegócio representa 83% das exportações do Estado de Mato Grosso do Sul). Mas a sua reflexão sobre o valor da vida indígena em tempos de expansão do agronegócio foi um verdadeiro murro no estômago. A recusa das populações em ceder face à ameaça dos seus direitos ambientais, culturais, económicos e sociais tem levado à invasão violenta das suas terras por fazendeiros e ao assassinato impune dos seus líderes. Ládio conhece bem a realidade da qual fala: vários familiares próximos e cerca de 300 pessoas do seu povo foram mortos por não pararem de lutar pelas terras que legitimamente ocupam. Ouvimos relatos do desvio do curso dos rios, da contaminação de nascentes e da degradação dos ecossistemas, prejudicando-se ainda mais a subsistência desta população; escutámos relatos de fome, de crianças mortas por envenenamento e muitas outras a nascer com deformações por conta dos tóxicos usados na agricultura, despejados indiscriminadamente nos campos por aviões; ouvimos relatos de atropelamentos, desaparecimentos, homicídios e suicídios forjados – sem investigação pelas autoridades; e da situação dos cerca de 800 activistas presos, a maioria sem acusação formal, por lutarem por terras legalmente suas; no meio desta violência, os drones vigiam constantemente os acampamentos indígenas.
A visita de Ládio Veron a 13 países europeus veio procurar solidariedade internacional para a sua luta e a denúncia dos massacres ocorridos – ciente de que, apesar da condenação da ONU, tem havido um fraco comprometimento político com esta causa e as mortes das lideranças indígenas não podem ser em vão. A iniciativa The Defenders Tracker, uma parceria entre o diário britânico The Guardian e o observatório Global Witness lançada a 31 de Julho, contribui para registar e divulgar os nomes daqueles que foram mortos enquanto defendiam as suas terras, florestas, rios e vida selvagem – geralmente dos impactos nocivos da indústria. Segundo dados da Global Witness, desde o início de 2015 foram assassinados 132 defensores do ambiente só no Brasil. A expressão “índio bom é índio morto” – usada pelo jornalista Walter Narrarro, recentemente condenado – traduz a brutalidade da luta pela efectivação do direito à terra.
Quando o pai de Ládio, Marcos Veron, viajou também pela Europa em 2001, havia já um reconhecimento jurídico das terras indígenas; mas ainda que a lei existisse no papel, não era respeitada. Nas suas palavras: “O nosso principal desafio é aprender a fazer o papel falar.” Foi assassinado pouco depois; a luta do seu povo continua.