Comemora-se amanhã o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, proclamado Dia da Raça pelo Estado Novo – e na ocasional gaffe política. Instaurada em 1933, a data celebrava o passado épico e o carácter singular dos portugueses, ideias duradouras da identidade nacional. Em 1978, a designação foi abandonada, mas nem sempre o espírito da iniciativa.
Que o passado seja evocado para justificar o presente não é novidade, nem é exclusividade do Estado Novo. Mas é curioso notar como, nos debates sobre história e memória no contexto democrático, a discussão sobre raça e racismo continua a ser evadida. Primeiro, por negligência activa: não se mexe na questão, mas ela continua à espreita. Pode ser encontrada entre os que persistem e insistem em omitir a crítica às narrativas históricas dominantes, que continuam a projectar um mundo governado por uma ordem racial. Atentemos a um exemplo. No dia 10 de Junho, em 1971, foi inaugurada em Coimbra a Praça dos Heróis do Ultramar, designação que ainda retém apesar da significativa mudança toponímica na zona após o 25 de Abril. A praça inclui uma estátua de bronze que homenageia os soldados que combatiam na chamada “guerra colonial”, de Cabral Antunes. Segundo a descrição oficial, a estátua “representa um soldado com a indumentária da época, numa posição que denuncia estar a caminhar, segura na mão direita uma arma, enquanto com a esquerda ampara uma criança de origem africana que tem sobre os ombros.”
Com a construção do estádio para o Euro 2004, um complexo desportivo camarário e um centro comercial, a praça viu-se reduzida no tamanho, mas a estátua foi mantida. Com uma diferença: antigamente virada para a Praça de Salazar, um pouco mais abaixo, hoje está de costas para a entretanto renomeada Praça 25 de Abril. Na reinauguração oficial, em 2005, circularam críticas ao monumento. Fernando Rosas, por exemplo, denunciou o revivalismo colonialista promovido por governos de direita que exaltavam “A heroicidade da guerra e dos combatentes, a recuperação do colonialismo e da guerra colonial como momentos altos de continuidade histórica com o passado das descobertas e da ‘expansão’ portuguesa” (Rosas, Público, 27 Abril 2005). Porém, rapidamente o debate foi centrado nas memórias do soldado do “ultramar”; pouco foi dito sobre a missão civilizadora do colonialismo português, simbolizado pela criança negra meio desnudada que ainda hoje vai aos seus ombros. Esta é a forma costumeira de invisibilizar o racial: raça subjaz a concepções históricas de humanidade e dignidade, mas nisso não se mexe para não acordar fantasmas; como nos diz David T. Goldberg, raça “é enterrada, viva”.
A segunda forma comum de evadir raça é pela corrida à inocência: reconhece-se a questão, mas trivializa-se a sua expressão e o seu significado na contemporaneidade através do argumento da complexidade e ambiguidade da história. Vamos até Lisboa, a Belém. Em 1995, Michel-Rolph Trouillot (1949-2012), o académico estudioso da invisibilizada Revolução do Haiti, registou em Silencing the Past o seu olhar sobre esta encenação monumental da história colonial portuguesa. No seu entender, demasiados símbolos povoam a cena para que se possa manter refém da história oficial: “Tudo aqui evoca um outro lugar e a cara escondida da Europa: a Cristandade não tinha deixado um único continente intocado.” Enquanto percorre em pormenor a “parafernália colonial” de Belém, Trouillot vai interpretando a toponímia local – que simboliza menos aventura que conquista. Termina com o ainda hoje chamado Padrão dos Descobrimentos, que “re-empacotou o passado de Portugal numa exibição grandiosa de inocência aventureira. [...] o memorial era demasiado grande para convencer-me da sua castidade: a sua massa arqueada falava de conquista, do desejo d[o Infante D.] Henrique de dobrar o espectador sob a sua vontade”.
Hoje, no porão deste monumento exibe-se a exposição Racismo e Cidadania, de relevo público. Através de imagens reveladoras do preconceito e das suas ambiguidades, intui-se a formação do estado moderno racial – a construção violenta da nação cristã e branca, expurgando o judeu, o muçulmano, o negro e o cigano (este sempre ausente da história). Reconhecem-se as realidades de opressão e exploração pela escravatura e o trabalho forçado por decreto até 1961 em antigas colónias africanas. Alude-se ao Estatuto do Indígena (1926-1961) que concedia diferentes direitos com base em raça e exibe-se a objectificação dos nativos no postal ilustrado ou nos zoológicos humanos das exposições coloniais de 1934 e 1940.
Há razões para ficarmos “optimistas”? Nem por isso. Para além de não questionar a relevância de Belém no actual imaginário nacional, dois aspectos nesta história do racismo continuam reféns do padrão eurocêntrico: primeiro, os colonizados não são sujeitos na longa duração deste processo histórico, não se mostrando qualquer forma de resistência até às independências (a terminologia usada ilustra isso mesmo); segundo, a exposição projecta, sem ambiguidade, um final feliz – como se o racismo institucional (na escola, no trabalho, na prisão) tivesse acabado com a ditadura. A corrida à inocência é gritante. Ainda assim, no debate associado à exposição no Teatro São Luiz, não conseguiu calar as vozes dos que contra ela se levantaram – e que sabem que o formalismo da neutralidade do Estado permite àqueles que beneficiam do poder estabelecido ampliar ou redefinir as estruturas de oportunidade a seu favor; é esta tensão entre o racismo e a sua negação que define o Estado Racial de Goldberg –e a complexidade da nossa história contemporânea.