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03-06-2017        As Beiras

A política autárquica incorpora muito do melhor e do pior que contêm os nossos 43 anos de democracia. Com a revolução de Abril, um universo de possibilidades foi criado, à medida que a gestão dos municípios e das freguesias se tornou mais representativa, alargou as competências e ampliou os meios à sua disposição. A descentralização, ainda que imperfeita, foi crescendo, autonomizando e responsabilizando os autarcas, e aproximando-se dos cidadãos. Nada de comparável com o tempo em que era necessário criar «comissões de melhoramentos» para tratar de reparações numa escola, ou ir a Lisboa «fazer um pedido» a um ministro para abrir uma estrada. Na inauguração este ainda era recebido com filarmónica, foguetes e discursos de agradecimento. Foi um tempo de centralismo extremo e de desamparo das populações, quando obras básicas eram tratadas como singulares favores.

Foi imenso o que depois se fez em democracia, e é em boa parte por isso que o país está hoje positivamente irreconhecível. Obras com impacto na vida das pessoas, espaços que permitem uma qualidade de vida superior, apoios à educação, à saúde, às crianças, aos idosos, iniciativas culturais de toda a ordem, da responsabilidade de milhares de autarcas com inteligência e sentido de serviço. Um trabalho, tantas vezes fantástico, que deve ser reconhecido.

Porém, esta tem sido também uma das áreas nas quais o mau governo, a falta de perspetiva, o desperdício e mesmo a corrupção se têm propagado. Jamais será feita a contabilidade dos milhões gastos em obras mal planeadas, mal produzidas, inacabadas ou completamente inúteis. Já que escrevo para um jornal de Coimbra, lembro o escândalo colossal do Metro Mondego, com 107 milhões de euros esbanjados sem resultado visível ou responsabilidade aferida. E nunca se conhecerá a dimensão real da fuga de pessoas qualificadas, trocadas em cargos decisivos por militantes partidários ajuizados pela fidelidade. Talvez um dia os historiadores reconheçam o modo como tantos centros históricos e periferias foram descaraterizados por praças, rotundas e vias rápidas construídas sem critério, ou por tristes urbanizações levantadas para mostrar obra feita ou sustentar interesses.

A origem do que de pior tem acontecido terá muitas razões, e não cabe aqui fazer o seu inventário. Limito-me a duas. A primeira prende-se com o conhecido princípio proposto por Laurence Peter, segundo o qual «num sistema hierárquico, todo o funcionário tende a ser promovido até ao seu nível de incompetência.» A primazia da fidelidade política ou pessoal sobre a competência e as provas dadas têm nas autarquias conduzido a lugares-chave muitas pessoas, colocadas em funções acima das suas reais capacidades, sem conhecimento ou rasgo para as preencherem de forma dinâmica e construtiva. Qualquer pessoa com capacidade crítica facilmente as reconhece.

A segunda razão é a substituição da política pela ideia peregrina de «obra feita». Não importa o sentido de muitas realizações, desde que estas sustentem fornecedores, deem emprego a fiéis ou alimentem o bairrismo e os seus interesses. É isto que tem feito com que conhecidos autarcas a contas com a justiça, por ilegalidades, má gestão ou desvio de verbas, sejam reconduzidos em novas eleições. Há aqui um «défice de política», no sentido nobre da palavra: falta muitas vezes gestão transparente e dinâmica da «polis», como faltam opções planificadas, projetos com orientação clara, horizontes entendidos pelos eleitores. Ao invés, abunda a governação casuística, a prepotência enfatuada, em alguns casos a ignorância atrevida, sempre embrulhados em demagogia.

Contudo não tem de ser sempre assim, como o comprovam os bons exemplos. Está nas mãos da cidadania ativa, apoiada na participação da sociedade civil e na opinião pública – incluindo sempre a atividade os partidos, sem os quais não existe democracia –, encontrar as melhores soluções. Escolhendo e apoiando os mais capazes e empenhados, não quem mais promete, mais sorri, mais palavrório projeta em tempo de eleições. Fazendo-o com base em ideias claras, projetos compreensíveis, rostos credíveis e compromissos públicos. Não é fácil, mas é possível.


 
 
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Rui Bebiano



 
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