A crítica norte-americana aos excedentes da balança comercial germânica catapultou o tema para os jornais alemães. Não é que a questão seja nova. Já há anos que a Comissão Europeia se queixa do problema. Em 2016, os excedentes atingiram um novo recorde de 297 mil milhões de dólares, mais do que a China e muito acima da média recomendada pela União Europeia. Também o FMI já expressou a sua preocupação várias vezes. Porém, nos media germânicos dominava a perspectiva nacional e mercantilista. "Excedentes de exportação" ou "campeão das exportações" eram termos empregados com orgulho nacional como se de uma modalidade desportiva se tratasse. Olhava-se para eles como símbolo da competitividade da marca "made in Germany", resultado das reformas laborais no início do milénio. Aqui e ali, vozes keynesianas criticavam o seu efeito nocivo para o equilíbrio da economia europeia, mundial — e até mesmo para a própria Alemanha. Argumentavam que muitos alemães não estavam a beneficiar deste "segundo milagre económico", de não haver investimentos e de o país se está a tornar num país de baixos rendimentos, onde a desigualdade social cresce continuamente. Alertavam também para o perigo de a crise financeira se repetir visto a Alemanha não apenas exportar produtos mas também capital e crédito para o estrangeiro poder financiar os seus próprios produtos, acumulando assim dívidas e dependências nessas regiões. Porém, essas vozes ficavam-se por publicações com reduzido impacto mediático.
A eleição de Trump veio alterar a situação. Os jornalistas começaram a mencionar a perspetiva internacional, mesmo que de sobrolho carregado. Já antes da tomada de posse, Trump colocou o país em alvoroço ao afirmar numa entrevista ao tablóide Bild que as exportações alemãs eram um problema e ao ameaçar a indústria automóvel com sobretaxas aduaneiras. Pouco depois da tomada de posse de Trump, Peter Navarro, o seu conselheiro comercial, usou palavras duras para descrever a economia alemã, geralmente reservadas à China. Numa entrevista ao Financial Times, acusou a Alemanha de prática comercial injusta e de estar a usar o Euro como uma versão desvalorizada do Deutsche Mark para fomentar as suas exportações, explorando assim os seus parceiros europeus e os EUA. Tal crítica chocou Berlim, habituado que estava a apresentar-se como modelo virtuoso e a dar lições de economia e moral durante a crise do Euro. Merkel retorquiu que as vantagens do Euro fraco para a economia alemã resultam da política do BCE, cuja independência ela sempre respeitou. O Ministério da Economia recusou o pedido de cooperação bilateral de Navarro para a solução do problema, argumentando que a política económica europeia é da competência da UE.
Porém, o nervosismo permaneceu. O governo alemão sabe que os seus argumentos são só parcialmente válidos. É verdade que os juros baixos do BCE favorecem as exportações sem a interferência de Berlim, mas é igualmente verdade que eles se devem à ausência de soluções políticas — também da Alemanha — aos problemas europeus. É verdade que a Alemanha não manipula o valor nominal do Euro, mas condiciona o seu valor real através de outras variáveis económicas como a contenção salarial. Berlim sabe que pôde ignorar as preocupações da Comissão porque a ela lhe faltam aliados poderosos entre os Estados-membros. Pôde igualmente deixar passar as críticas do FMI porque não está dependente dos seus créditos. No entanto, está consciente que não poderá ter a mesma atitude com os EUA. O “Dieselgate” provou-o recentemente: apesar de o governo alemão e a Comissão Europeia estarem há muito a par das manipulações da Volkswagen, só os EUA tiveram o poder de confrontar a poderosa indústria automóvel alemã com a fraude.
Restava, pois, a esperança que Trump mudasse de opinião, o que face à volatilidade dos seus ditos não era infundado. Tanto mais que a influência de Navarro se foi esvanecendo a favor de personalidades de Wall Street com ideias multilateralistas como Gary Cohen. Tal explica que Schäuble tenha viajado recentemente a Washington para o encontro do FMI e Banco Mundial com uma estratégia de apaziguamento na mala. Tentou convencer novamente que a competitividade alemã se deve apenas às reformas laborais e à qualidade dos produtos alemães e aconselhou os outros países a seguir o exemplo. No entanto, as suas expetativas foram logradas. Steven Mnuchin não só se recusou a prescindir da ansiada cláusula anti-proteccionista no communiqué do encontro como também exigiu que os países com excedentes contribuíssem para regras justas e o equilíbrio do comércio internacional. Pediu que o FMI fizesse uso do seu mandato no sentido de supervisão e de apresentação de propostas concretas do problema. Dado que os EUA detêm a maioria de voto no FMI, Lagarde dificilmente poderá ignorar a posição norte-americana. Além disso, Emmanuel Macron, o novo Presidente francês apoiado por Berlim, também já criticou o balanço comercial do país vizinho em público.
Ver-se-á, pois, como a Alemanha reagirá a este desafio de forma a evitar uma situação insustentável para a Europa e uma guerra comercial com os EUA, encabeçada pela Comissão Europeia. Quanto a impulsos internos, o governo alemão teria de mudar a sua retórica nacionalista e convencer primeiro a população que o país não é apenas um dos maiores contribuintes da Europa, mas que a sua economia é a que mais lucra da UE. Porém, tal mudança é pouco provável antes das eleições em Setembro. Especialmente tendo em conta que o novo partido de extrema-direita, Alternative für Deutschland, tem vindo a pressionar os cristãos-democratas a empurrar o partido mais para a direita e a dar ênfase à retórica nacionalista. Sendo o nacionalismo ideológico um tabu devido à história alemã, o nacionalismo económico continua a ser um dos trunfos mais importantes — também para compensar pelo menos simbolicamente os alemães que nada lucram com o superavit. Impulsos da esquerda alemã surpreenderiam. O partido social-democrata perdeu credibilidade com as reformas neoliberais de Gerhard Schröder e o baixo perfil político que lhe restou esbateu-se na grande coligação com Merkel. O coup de nomear Martin Schulz para candidato a chanceler do SPD foi recebido com grande entusiasmo, mas os resultados das eleições em Saarland em fins de Março refrearam os ânimos. Os Verdes lutam pela sobrevivência política e o partido Die Linke ainda é visto como um vestígio da antiga RDA. Perante este torpor biedermeier, a visibilidade que a crítica externa aos excedentes assumiu na Alemanha desde Janeiro pode ser considerada um modesto "progresso". Restam, pois, as pressões externas, principalmente do outro lado do Atlântico.