A memória faz-se como se pode. E quem pode, manda erguer estátuas; quem não pode, nomeia os filhos com os nomes dos seus heróis. Foi assim que uma criança nascida em 1971 recebeu o nome Amílcar e outra ficou Sérgio. Este último era por causa do Godinho, que toda a gente conhece, mas Amílcar é um nome sem memória para muitos daquela geração. Já Cabral, na escola aprendia-se só um: Pedro Álvares Cabral, o que foi ao Brasil.
Amílcar Cabral, nascido em Bafatá em 1924, seguiu a família para Cabo Verde aos 8 anos e concluiu o liceu no Mindelo. Foi para Lisboa, onde se formou como engenheiro agrónomo e teve um percurso político que passou pela Casa dos Estudantes do Império e pelo MUD-Juvenil, antes de vir a fundar o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) em Bissau, em 1956. Teve grande relevo internacional pelo seu pensamento político revolucionário, e contribuiu de forma crucial para as independências nacionais em África e a queda da ditadura do Estado Novo. Não chegou a testemunhar nenhum dos eventos: foi assassinado na Guiné-Conacri a 20 de Janeiro de 1973, meses depois do seu discurso à Assembleia Geral das Nações Unidas e meses antes da declaração unilateral de independência da Guiné-Bissau pelo PAIGC – reconhecida por 82 países.
Hoje, Amílcar Cabral pouco é lembrado, sobretudo em relação ao 25 de Abril que ainda há pouco voltámos a comemorar. Na escola, Cabral confronta Salazar nos manuais de história de uma matéria quase nunca dada, num excerto convenientemente editado para tapar as vergonhas maiores da escravatura e do colonialismo português. Nas universidades, proliferam sobretudo as cadeiras da chamada ‘História dos Descobrimentos’ ou da ‘Expansão’ e os homens lembrados são outros; salvo raras excepções, Cabral aparece quanto muito nos cursos de literatura através de algum poema seu. Nas exposições comemorativas do 25 de Abril, o seu busto espreita num ou noutro cartaz, mas pouco pode dizer. No cinema português não figura, e nos documentários é protagonista sobretudo no estrangeiro, como no Cabralista de Valério Lopes. Ainda se encontram os seus livros em primeira edição nos alfarrabistas, mas a maior colectânea dos seus textos e discursos – Unidade e Luta, publicada pela Nova Aurora em 1974 – viu apenas uma reedição em Portugal, em 1978, pela Seara Nova (a última edição em inglês é de 2009). O Portugal do 25 de Abril prefere comemorar antes o protagonismo das figuras metropolitanas da ‘oposição democrática’ e dos ‘capitães de Abril’, como na fórmula do popular filme de Maria de Medeiros – traçando mais uma linha indelével na memória. Como se efectivamente estivéssemos divididos pelo lado de cá e o lado de lá; e o lado de lá, o que rima Cabral ka mori, já se sabe, não interessa.
Se evoco Cabral não é porque se aproxima o Dia de África e creia na ‘ilusão da inclusão’, mas exactamente porque acabámos de passar mais um 25 de Abril e creio ser necessária uma abordagem que, evidenciando os apagões que têm sido produzidos no contexto democrático, nos ajude a um outro entendimento da nossa própria história. Para isso, teremos de interrogar a narrativa do consenso: que Abril se fez do ‘cansaço’ das tropas portuguesas; que Abril se fez ‘com muitas flores’ e ‘sem sangue’ cá no nosso cantinho à beira-mar plantado; que Abril resultou da ‘sensatez’ das forças armadas e da visão da ‘oposição democrática’; e que ‘levámos liberdade e democracia ao mundo’, pelo menos ao mundo colonial português. Esta narrativa foi capturada pelo escritor Germano Almeida, em Dona Pura e os Camaradas de Abril, através da personagem do primo Natal que dizia, ambicioso: ‘lembra-te de que o 25 de Abril significou uma viragem mundial em todas as políticas, teve uma implicação internacional que começou com o fim da era colonial, passando pelo desmantelamento do apartheid até à queda do Muro de Berlim e do bloco de Leste e chegando a eleições multipartidárias em toda a África...’.
Superar a amnésia sobre Abril requer identificar, nos discursos sobre a história, os legados da ‘tese da imaturidade política’ do sujeito africano, que Cabral denunciou no seu Apelo aos Portugueses em 1970: ‘Aos ambientes cultos de Portugal, especialmente aos democratas progressistas, incumbe a tarefa de ajudar o povo português a destruir os vestígios virulentos da ideologia esclavagista e colonialista, os quais determinam duma maneira geral o seu comportamento negativo perante as justas lutas dos povos africanos. Por isso mesmo, os meios intelectuais deveriam também vencer a sua mentalidade imperial, feita de preconceitos e desdém sem fundamento pelo valor e capacidade reais dos povos africanos’. Nesse trabalho de memória, é fundamental reconhecer o impulso decisivo dado pelos movimentos de libertação africanos ao 25 de Abril, como sugerido por John Woollacott. Num artigo publicado na Análise Social, em 1983, tornou evidente a ligação entre o PAIGC e o MFA no período que antecedeu o golpe militar. O seu texto inclui o relato de Jack Bourderie no Afrique-Asie: ‘Quando as notícias sobre o golpe de Lisboa chegaram ao quartel-general do PAIGC em Conakry, foi um pandemónio: os militantes do Partido e os guerrilheiros riam-se, gritavam, abraçavam-se, pulavam – "Vês? Ganhámos! Destruímos o fascismo português [...] é graças a nós que o povo português é hoje livre!" A euforia momentânea dos militantes do PAIGC traduzia a essência da realidade histórica: a Guiné era o frágil elo da cadeia colonial de Portugal e o regime de Lisboa não poderia sobreviver a uma derrota em África'.