Passada a fase de relativa acalmia que se seguiu à queda do Muro de Berlim e à derrocada das experiências do «socialismo realmente existente», quando o equilíbrio internacional assente num mundo bipolar pareceu dar lugar a uma ordem de sentido único, é hoje percetível que estamos de regresso a um clima de Guerra Fria. Este não repete o anterior, mas replica alguns dos seus mecanismos caraterísticos. Destaco três: a divisão entre duas áreas de influência política, polarizadas nas potências com maior capacidade político-militar; o papel da propaganda e da contrapropaganda neste processo de separação, em particular nos conflitos que envolve; e a presença de séquitos de sectários que propagam os pontos de vista de cada um dos lados, servindo os seus interesses estratégicos.
É bem visível nova divisão do mundo em áreas de influência. A presença global dos Estados Unidos e da Rússia, da sua ativa diplomacia e da sua elevada capacidade de intervenção, é claramente percetível, não sendo modulada por forças de natureza democrática com capacidade para erguer áreas libertas da sua interferência. A União Europeia tem sido, aliás, um catavento em posição de subalternidade face a Washington. A China tenta interferir em algumas políticas regionais e funciona, no atual mapa, como um fiel da balança que tenta conquistar o máximo neste papel. Já os setores irredentistas do Islão intervêm como fator desregulador, funcionando, nas áreas nucleares, como justificação para o reforço do Estado, a corrida ao armamento e o crescimento dos sistemas securitários. Entretanto a democracia definha, presa numa tenaz cujos braços são o medo e a desinformação.
O papel da propaganda é decisivo. Num mundo em que a expansão de meios de comunicação e de informação é acompanhada de uma perda de controlo dos seus conteúdos por parte dos cidadãos, intoxicados por instrumentos nas mãos de interesses corporativos ou privados, torna-se fácil, particularmente em momentos de conflito agudizado, a disseminação de notícias falsas e deturpadas, ou a construção sistemática de redes de informação destinadas a condicionar tomadas de decisão. Os exemplos são constantes, mas o mais presente tem como fatídico campo de experiências a guerra civil na Síria. Num contexto complexo, no qual «bons» e «maus» se distribuem por todos os campos, a manipulação – como em todas as guerras, praticada por ambos os lados – apenas tem servido para passar para segundo plano o imenso drama humano ali instalado.
Particularmente negativo é o facto de a informação falsa ou contraditória ser usada e disseminada, muitas vezes, por quem o faz em nome do que diz ser «a verdade». Por um lado, a extrema-direita europeia relê e deturpa a catadupa de notícias sobre os acontecimentos na Síria, para, dentro de portas, promover políticas isolacionistas, xenófobas e autoritárias. Por outro, a parte da esquerda saudosa do velho mundo bipolar, mostra-se sempre pronta a apagar a «história inconveniente» – a negação do estalinismo e dos seus crimes colossais, convém não esquecer, tem vindo a renascer, apesar da ampliação dos estudos históricos nesse campo – ou a fazer alianças espúrias com qualquer um, desde que sirva os seus objetivos. Opondo, à informação dominante, nem sempre fidedigna – apesar de ser inverosímil que milhares de jornalistas profissionais colaborem na construção de um logro total –, uma outra, «verdadeira», oriunda de fontes obscuras ou oficiais.
Em Portugal isto é percetível junto de setores próximos da esquerda mais ortodoxa, que, como é próprio de todas as ortodoxias, considera e embeleza apenas um dos lados da realidade, excluindo todos os outros. Mesmo quando, pelo meio, se apaga o sofrimento de comunidades inteiras apanhadas e trucidadas pela violência de uma guerra sem justos. Só consigo explicar isto de três formas: porque mantêm a velha e redutora lógica do «inimigo principal» e único (o inimigo do meu inimigo, meu amigo é); porque preservam a ideia, nostálgica e aberrante, de que algo ainda une a atual Rússia à antiga União Soviética («até pode ser que aquilo vire de novo», ainda ontem li numa página do Facebook que se leva a sério); e, finalmente, porque perdem o pé perante uma realidade complexa e a cores, preferindo, pois isso está na sua matriz idiossincrática, simplificá-la a preto e branco. É pena.