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25-06-2016        As Beiras

Nas Aventuras de Tom Sawyer, Mark Twain disse ser «fácil justificar uma tradição, mas muito difícil vermo-nos livres dela», dada a força que pode tomar. O historiador Eric Hobsbawm mostrou em 1983 que as tradições são sempre invenções, mais próximas de um certo imaginário cultural que da realidade da vida. Simplificando a interpretação: aquilo que produz uma tradição e lhe confere essa força não é a reprodução das mesmas práticas, supostamente antigas, através do tempo, mas antes a tendência para repetir uma interpretação conservadora enquanto os factos e os contextos se vão transformando. Por isso, tantas vezes é anacrónica e imobilista.

Isto não significa, porém, que funcione apenas como uma prisão, forçando o presente a reproduzir o passado, e que não tenha qualquer valor dentro da vida social. Longe disso. Muitas vezes a tradição pode, no seu sentido verdadeiro – isto é, como a imaginação de uma continuidade cultural forte – cimentar as identidades das nações, dos coletivos, das regiões ou das cidades. Em Coimbra, onde a palavra «tradição» tem um peso muito grande no discurso público, em particular naquele que é veiculado por algumas instituições e por certos setores sociais, bem como pela generalidade da imprensa local, ela desempenha um papel importante, embora complexo e nem sempre consensual, na construção interna e na projeção exterior de uma imagem da cidade.

Apenas um exemplo que tem a ver com o imaginário da vida universitária, em particular da estudantil. A par da fixação de um retrato datado e saudosista, que é vertido na maior parte dos livros de memórias de antigos estudantes, ele reproduz uma ideia de cidade observada como espaço fechado. Associado em larga medida à projeção tipificada de uma imagem de boémia, estúrdia ou evasão que é sistematicamente utilizada para produzir um sentimento de nostálgico escapismo. Como se no passado copiado residisse o que de melhor há a preservar no percurso coletivo. Existem largas dezenas de obras do género, sucessivamente publicadas a partir dos finais do século XIX, que no essencial se copiam umas às outras. In Illo Tempore, o livro de Trindade Coelho editado em 1902, ainda será a melhor e mais original.

Mas ao percorrer a história deste setor social com um peso elevado e decisivo na vida da cidade encontramos também o inverso. Podemos descobrir uma outra tradição universitária estudantil e coimbrã: a de uma contínuo e renovado combate pela democracia, de crença no conhecimento e na criatividade, de cosmopolitismo, experiência cultural e capacidade crítica, de oposição ao marasmo e de projeção de futuros, que poderíamos fazer recuar às iniciativas dos rapazes da «geração de 70», para os quais, como escreveu Eça no seu texto de homenagem póstuma ao companheiro Antero, «só podia haver uma atitude, a de permanente rebelião». Uma atitude que depois se foi afirmando durante as longas, difíceis e heroicas décadas da resistência à ditadura.

Somerset Maugham disse que «a tradição deve ser um guia, mas não um carcereiro». Deve servir-nos, não nos tornar seus escravos. E se apenas ajudar a piorar as nossas vidas, devemos atirá-la para o lixo. Exemplo desta necessidade é o desgraçado costume que, desde há longos anos, tem impedido a construção, na nossa cidade, de uma vida democrática fundada, à esquerda do espectro político, numa relação de confiança, de diálogo franco e de eventual ou ocasional colaboração.

No contexto político presente, que na dimensão nacional daquilo a que uma direita supostamente espirituosa chamou «a geringonça» é hoje, como se sabe, o de um entendimento construtivo, torna-se ainda mais difícil compreender essa má tradição de teimosamente aprofundar o fosso. Agindo por defeito de pedra na mão, acusando quem diverge construtivamente de má-fé e – recorro à palavra-cliché que integra o «politiquês» local – de «botabaixismo». Viveríamos por certo bem melhor se o hábito da animosidade e do descrédito, que desperdiça energia e inteligência, fosse, por quem por direito próprio detém a capacidade de propor e decidir, de uma vez por todas abandonado. Trata-se de uma tradição daninha que a poucos serve e a todos prejudica. E até estamos em tempo de invenção de uma outra, bem mais criadora e positiva. Assim exista vontade, discernimento e a dose certa de humildade democrática.


 
 
pessoas
Rui Bebiano



 
temas
democracia    modernidade    tradição