Em Abril de 1969 principiou em Coimbra uma «crise académica» na qual a ampla maioria dos estudantes universitários se manifestou contra a política educativa e o autoritarismo de um regime caduco que iria durar ainda mais seis anos. Com raras exceções, a maior parte desses estudantes, se já não era da oposição, passou a sê-lo, dada a atitude inflexível então tomada pelo governo e reforçada pela ação da polícia e da PIDE. A história abalou o país, é bem conhecida e não vou aqui detalhá-la. Menos conhecido é porém o que aconteceu a partir do ano letivo seguinte, com a intensificação da repressão do movimento. Esta materializar-se-á em Fevereiro de 1971 no encerramento da Associação Académica – iniciada, eu estava lá, com a dispersão pela polícia de choque de uma assembleia que decorria de forma pacífica –, e deveu-se em primeiro lugar ao facto da intervenção estudantil se estar a politizar de forma cada vez mais acentuada, alterando a qualidade de um movimento que em 69 era ainda sobretudo de protesto.
Os sinais dessa rápida politização, que aliás nem todos os setores da esquerda estudantil então compreenderam ou aceitaram, passavam por diversos vetores. O mais essencial, comum à generalidade das fações políticas no terreno, visava lutar pela reabertura das instalações da AAC, o que só viria a acontecer com o 25 de Abril. Terá sido, todavia, justamente esta ausência imposta de um espaço físico aglutinador a elevar o patamar da luta estudantil para iniciativas e áreas que se situavam já para além da mera atividade associativa.
Esta etapa incluiu a entrada em cena de setores mais radicalizados, em parte inspirados nos ideais e nas tendências do Maio francês de 1968, que apesar de inicialmente minoritários se revelaram politicamente hiperativos e com uma crescente capacidade de mobilização. Entre as suas bandeiras estava agora já não apenas a democratização do ensino e da sociedade, ainda centrais na «crise de 69», mas a luta direta contra o regime, a proposta de um modelo de sociedade idealmente socialista, a afirmação de práticas de resistência e alternativa cultural, e, de forma particularmente aguda e intolerável para o governo, a oposição declarada à manutenção da guerra nos três teatros africanos, que devastava o país e a sua juventude havia já cerca de uma década.
Acompanhei por dentro este combate particular. As reuniões clandestinas estudantis, abertas a vários setores políticos, algumas nos canaviais da beira-rio, em caves de casas da periferia ou em repúblicas, lendo e discutindo horas a fio para compreender o colonialismo e conhecer os ideais daqueles que se batiam pela sua liberdade. E também a preparação de iniciativas contra a continuação de uma guerra que considerávamos injusta e desnecessária, bem como o lançamento de campanhas que defendiam a recusa da mobilização militar dos jovens que em regra não sentiam essa guerra como sua. Em Maio de 1972 participei, na Baixa de Coimbra, numa manifestação que tinha como objetivo precisamente defender o fim da guerra e a concessão da independência aos povos de Angola, Guiné e Moçambique. Na sua sequência acabei, com mais alguns companheiros, preso, identificado e interrogado pela polícia e pela PIDE, o que no meu caso viria a determinar a recusa do pedido de adiamento do serviço militar e a incorporação compulsiva no exército em Abril de 1973.
Seria mobilizado para Angola já depois da Revolução de Abril. Embora não de imediato, porque, mesmo com a queda do regime, ainda não tinham sido assinados os Acordos de Alvor e formalmente a guerra continuava. Observando o que tinha defendido antes, faltei por isso ao embarque, tendo vivido e trabalhado alguns meses na clandestinidade. Estabelecida a paz e decretada uma amnistia para quem tivesse desertado por motivos políticos, fui reintegrado no exército e finalmente enviado para Luanda, onde estive envolvido no processo de paz e pude também estabelecer, em representação da organização na qual então militava, contactos que resultaram em ações de apoio logístico e militar ao MPLA, das quais este viria a beneficiar na luta pelo poder dentro da capital. Reencontrei aí alguns antigos companheiros angolanos que conhecera em Coimbra e que tinham ido viver e lutar no seu país em nome dos ideais que havíamos partilhado.
Lembro esta experiência porque revejo nas razões dos 17 jovens ativistas angolanos, agora arbitrariamente condenados como «malfeitores» por se encontrarem para debater um livro e o seu país, muitos dos argumentos que a tantos outros jovens portugueses um dia fizeram apoiar de forma sincera e objetiva os movimentos anticolonialistas e, em particular, o MPLA. Sublinhando que, infelizmente, encontro em muitas das acusações sobre eles lançadas pelos governantes e pelo sistema judicial angolano, mesclados de forma antidemocrática, palavras idênticas àquelas que as autoridades colonialistas usavam contra os combatentes independentistas e os que em Portugal arriscavam a vida e a liberdade para os apoiar. E condenando aqueles que, dentro da nossa esquerda política, pactuam com a arbitrariedade e fecham os olhos a esta ironia da História.