Há quase vinte anos atrás assisti, no processo de luta sindical que propiciou aos trabalhadores portugueses a conquista das 40 horas como duração máxima do trabalho semanal, à intervenção das trabalhadoras de uma pequena empresa no distrito de Aveiro. Estas trabalhadoras tinham esgotado todas as formas de diálogo e protesto com a sua patroa, e, após discussão coletiva em que parecia não haver saída, decidiram que todos os dias alguma delas descobriria um qualquer ato que se pudesse adotar individual ou coletivamente, por forma a chatear um pouco a patroa, e a elas granjear sorrisos. A estratégia resultou: algumas semanas depois tinham conquistado as 40h semanais, conquista conseguida bem antes do fim desse extraordinário processo reivindicativo – partilhado por centenas de milhares de trabalhadoras e trabalhadores, em particular dos distritos de Braga, Porto e Aveiro – que culminou num acordo entre patrões, governo e sindicatos em março de 1998.
Estamos a viver dias e semanas em que milhões de portugueses que se sentiam sufocados pela avalanche das “inevitabilidades” e de sacrifícios irracionais, observam sinais de esperança, pressentem que afinal pode haver alternativas e, embora com muitas precauções, vão esboçando sorrisos. Os partidos de esquerda estão fazendo política a sério, com forte sentido prático e de responsabilidade. Isso está a provocar mau humor, fúrias e caras feias a muitos dos instalados nos poderes que nos têm desgovernado e subjugado e nos desavergonhados comentadores “oficiais”.
Passos Coelho diz que o país está “atónito”, porque está desligado do que é verdadeiramente o país. Atónitos estão ele e os seus parceiros. É caso para dizer que o medo, em parte, seguiu a mudança do bico ao prego. Estão nervosos e atordoados e procuram baralhar os conceitos de estabilidade e instabilidade. Há choque e horror nas hostes da direita e das forças conservadoras, quer na área económica, quer social e cultural ou até (que Deus os perdoe) na área religiosa. Não é de admirar que, em alguns aspetos, se portem como a maioria dos nobres e elites deste país em 1383-1385, caindo na tentação da traição política.
Não sou capaz de imaginar até onde chegará António Costa, enquanto líder da força política mais representativa entre as que estão a procurar construir uma alternativa efetivamente nova, mas quero expressar a repugnância que me causam alguns adjetivos com que o têm mimoseado. A política a sério exige princípios éticos e morais, rigor e honra acima de tudo na interpretação dos interesses dos cidadãos e na relação com a sociedade. Tem-me vindo à memória “grandes” entrevistas de há poucos anos com figuras como Ricardo Salgado, exultando o valor da honra e outros entre as “famílias”, enquanto saqueavam o povo. O que está a acontecer é a emergência da política. É verdade que mais uma vez veio sem aviso prévio e isso gera medo nos instalados.
Repugnam as ressurreições e invenções de perigos, os argumentos expandidos contra a mudança política. É claro que a direita, os setores conservadores e os comentadores de serviço sustentam-se em estruturas e procedimentos avessos à mudança. Dá gozo ver esta gente, que repete aos trabalhadores e ao povo que os seus legítimos direitos não podem ser cumpridos “porque o Mundo mudou”, justificando assim roubos nos salários e pensões ou no acesso a direitos fundamentais, clamar agora contra a hipótese de mudança política, agarrando-se a argumentos de práticas instituídas. É a “estabilidade” de mais do mesmo e com os mesmos de sempre.
Os problemas do país, as condicionantes europeias ou as limitações vindas do contexto internacional são e serão as mesmas para qualquer governo. A legitimidade e força de um governo emanam e constroem-se a partir da exposição clara de posições das forças políticas representadas na Assembleia da República.
Se os partidos de esquerda, com a clareza e a acutilância com que têm atuado, criarem a base de sustentação de um governo, poderemos ter boas condições de estabilidade e uma articulação nova entre participação e responsabilização de que os portugueses precisam para iniciar, num processo com obstáculos, um novo ciclo de recuperação e desenvolvimento.