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22-04-2015        Público

A ausência de uma estratégia europeia para as migrações e os novos navios negreiros.

Pode a nossa ideia de Europa naufragar no Mediterrâneo? Pode e está a acontecer. Em cada barco que os traficantes enchem de seres humanos desesperados morre um pouco do humanismo europeu. Em cada mãe que embarca com os seus filhos pela mão morrem as nossas mães e os nossos filhos. Em cada pai que embarca sozinho e se despede da família que nunca mais verá morre a nossa ideia de família e de futuro.

Há um século Rosalia de Castro chorava as mães que não têm filhos e os filhos que não têm pais. Na margem sul desta Europa fortaleza são muitos os órfãos e as viúvas que devem à inércia da Europa a sua condição.

Estamos perante um negócio que se aproxima muito da ideia de vender pedaços da lua. Os traficantes, sabendo que há um desespero presente na vida de milhões de seres humanos, vendem-lhes 50cm2 numa sucata flutuante e a promessa de entrada no paraíso que sabem não existir. Como em qualquer mercado de bens escassos cada navio que se afunda faz subir o preço da próxima carga (sim, porque é disso que se trata e, sim, haverá mais, muitos mais navios a partir com o destino Europa).

As autoridades europeias (e, no fundo, todos nós que nos recusamos a agir) fingem que nada se passa e assobiam para o ar, empurrando para o Sul uma questão comum (mais uma vez o que não bate à porta de cada um não é do seu encargo). Campos de refugiados na Grécia, barcos cheios de refugiados económicos nas costas de Malta ou Itália, pateras cheias de gente em Espanha são meros fait-divers vistos a partir das cidades sede da União Europeia ou das suas capitais. Ironicamente, a boa imigração, que reconstrói os mercados de trabalho dos países da Europa Central e do Norte, é hoje migração qualificada dos países do Sul e a fuga dos jovens qualificados do Sul da Europa para o centro-norte algo que deve ser valorizado. Os outros, os imigrantes que vêm de países terceiros, não são bem-vindos. A Europa humanista e acolhedora já não mora aqui.

Ao mesmo tempo, sem vergonha, enviamos embaixadas de políticos e empresários negociar a importação de matérias-primas e a exportação do que nos sobra, seja produtos de luxo para uma ínfima elite ou armas para assegurar a paz (podre e pobre).

Para recuperar a humanidade e o humanismo há que mudar a política europeia e estabelecer uma estratégia que contemple o curto, o médio e o longo prazo. Deixo algumas ideias. Desde já, desde hoje, perante a emergência, estacar a perda de vidas humanas através de um recurso aos meios necessários: patrulhamento do Mediterrâneo; salvamento de quem corra perigo, detenção e julgamento dos abjectos traficantes de seres humanos. No curto prazo, mas ainda urgente, estabelecer acordos de cooperação com as autoridades dos países de origem e de trânsito destes migrantes, usar os serviços de informação para impedir os traficantes de criar novas redes criminosas, difundir campanhas de informação que impeçam a sua atuação. Importa também promover a abertura de canais que permitam uma migração legal e regulada (lembrem-se da Lei Seca e das suas consequências) e uma ampla campanha de informação nos países de origem e de trânsito. Sem portas de entrada haverá sempre quem tenha a tentação de saltar o muro (por mais alto que ele seja). Em simultâneo, exige-se uma alteração das políticas que gerem as relações diplomáticas, económicas e comerciais da União Europeia com o resto do mundo, de modo a permitir aos países do Sul um desenvolvimento real, capaz de criar as condições para a não migração. É difícil, mas não é impossível criar, no nosso tempo de vida, uma sociedade mais igual e uma relação mais fraterna e menos exploradora entre a UE e o Sul.

Portugal pode (na verdade, deve) ser um líder no estabelecimento de pontes de relacionamento com o Sul. Não basta promover cimeiras UE-África, é preciso liderar políticas. No que se refere à Estratégia Europeia das Migrações, temos a obrigação (pelo país de emigrantes que somos) de perceber melhor o que implica a emigração e a pulsão de fugir da pobreza. Liderar nas reuniões do Conselho Europeu, no Parlamento ou na Comissão Europeia uma política humanista para os migrantes deve ser um desígnio nacional. Temos a obrigação de liderar na Europa um combate pelo direito ao futuro de centenas de milhões de seres humanos. Não basta ser “bons alunos”, é preciso demonstrar que estudar serve para alguma coisa, para mudar o mundo, neste caso. Por altura de mais um aniversário do 25 de Abril temos a obrigação de ver (e de ajudar a ver) em cada rosto igualdade.


 
 
pessoas
Pedro Góis



 
temas
África    UE    migrações    refugiados    Europa