Nos momentos em que o conflito e a crispação social atingem o seu climax é inevitável que também os olhares dos analistas espelhem leituras opostas. E a mais recente vaga de manifestações no Brasil tem sido exemplar na proliferação de visões contrárias, cujos ecos têm chegado até Portugal. Para além do estado da economia e da crescente corrosão do sistema político brasileiro (e das democracias ocidentais em geral), vale a pena olhar alguns sinais reveladores das fraturas sociais do Brasil de hoje.
Nas manifestações de junho de 2013 ficou evidente a sua heterogeneidade mas também a presença de amplos segmentos populares. Para além da espontaneidade inicial, os acontecimentos tiveram lugar num momento em que o Governo de Dilma Rousseff beneficiava de elevados índices de popularidade, tendo, na sequência disso, descido de 62% para 41% de aprovação (IBOPE, julho de 2013). Os primeiros protestos do Movimento Passe Livre em São Paulo foram desencadeados contra o aumento dos preços dos transportes públicos e ampliaram-se depois, devido à resposta violenta da polícia e às acusações arrogantes de “vandalismo” por parte das autoridades (Governador do Estado/PSDB e Prefeito da cidade/PT). Só mais tarde evoluíram para um enquadramento programático dirigido contra o Governo e o PT, culminando no final desse mês com ataques às bandeiras vermelhas e aos símbolos de esquerda, sob o slogan “O Gigante Acordou”. Mas em 2013, para além de os ativistas iniciais se rebelarem contra a repressão policial, lutou-se por transportes, saúde e educação de qualidade (“padrão FIFA”), e foi clara a presença marcante dos setores subalternos da força de trabalho e do precariado periférico. A resposta do bloco governista (PT e seus aliados da CUT) foi de hesitação e perplexidade, mas a Presidente teve a lucidez de interpretar esses movimentos como um sinal de vitalidade da democracia, daí o seu anúncio solene de que “com o impulso dessa nova energia política poderemos fazer melhor e mais rápido muita coisa que o Brasil ainda não conseguiu fazer” (Discurso no dia 21.06.2013). O problema é que não o fez.
Importa lembrar que o Brasil é tão grande no território como na quantidade de escândalos, na corrupção e também no impressionante caudal de manifestações populares desde os tempos da Ditadura Militar. Nos anos oitenta do século passado esses poderosos movimentos grevistas e sindicais geraram o novo sindicalismo que, por sua vez, abriu caminho a um novo bloco no poder, que se mantém até hoje, suportado pela classe trabalhadora organizada (com origem no ABC paulista), onde nasceu o fenómeno Lula. Das mobilizações dos anos sessenta e setenta contra a ditadura, passando pelo movimento Diretas Já e pelo Fora Collor, a força das mobilizações de massas e a sua capacidade de gerar ruturas suscitou entretanto a conhecida “blindagem” do sistema político, no qual os acordos e alianças partidárias – cujo modelo inicial partiu do PMDB, ainda hoje parte fundamental da base governista – resultam não de um qualquer projeto (reformista ou conservador), mas acima de tudo do temor do povo. Essa mesma lógica tem servido diferentes maiorias, de direita e de esquerda, mas hoje e ao longo da era “lulista” tornou-se na principal amarra que prende o governo a compromissos sem coerência programática. A isso se deve o abandono das promessas eleitorais, anulados por interesses económicos poderosos ao serviço de uma elite hostil a qualquer projeto desenvolvimentista com verdadeira dimensão social.
Parece ser isso, associado às recentes tendências de retração da economia, aumento da inflação e do desemprego, que suscitou a recente onda de manifestações. Mas ao contrário da dinâmica popular, da relativa espontaneidade e da exigência de reformas sociais em 2013, os atuais protestos evidenciam a marca de uma narrativa ideológica típica da classe média instalada da região paulista. O que está em causa hoje não é apenas o combate à corrupção (recorde-se que os escândalos existem também nas hostes da direita) mas uma condição de classe que se reflete nos preconceitos, no conservadorismo cultural e no reacionarismo político em que navega a elite económica brasileira desde os tempos da ditadura. Enquanto em junho de 2013 o povo brasileiro proclamava o desejo de mais e melhores reformas, os protestos de março e abril de 2015 evidenciam uma pulsão conservadora, anti-PT, anti-programas sociais e uma parte dos participantes revela-se abertamente saudosista do passado retrógrado e autoritário do Brasil.
É por isso muito sintomático, embora não surpreendente, ver um articulista português como João Carlos Espada (PÚBLICO, 13/04/2015) emular as multidões “pacíficas e ordeiras” porque elas “em vez de confrontarem as forças da polícia, aplaudiam-nas”. Pois (!). E além disso também gritaram por “Intervenção Miliar Já!”. É verdade que na sua composição continua a existir uma grande diversidade, mas prevalece um claro pendor elitista. A composição dos participantes nos protestos de 15 de março de 2015 em São Paulo foi reveladora: 69% declaram-se de cor branca; 82% votaram em Aécio Neves; 51% eram residentes nas zonas sul e oeste (de classe média-alta); e 68% possuem rendimentos acima dos cinco salários mínimos (41% ganham mais de 10 salários mínimos; segundo o Datafolha, 17/03/2015). Os cerca de 210 mil no dia 15 de março e 90 a 100 mil no passado dia 12 de abril, no mesmo local, afirmaram-se movidos por uma vontade de combater a corrupção e desejam o Impeachment da Presidente. Mas embora 85% se declarem defensores da democracia, torna-se claro que é sobretudo a oposição de direita que insiste no bloqueio ao Governo. Os seus motivos não são apenas contra a corrupção mas pelo bloqueio das reformas do PT e as conquistas sociais da classe trabalhadora. A alta burguesia paulista, habituada a usar e abusar das suas “serviçais”, não aceita que as empregadas domésticas tenham agora alguns direitos e é para ela “contratura” tropeçar nos aeroportos pejados de gente do povo e nos carros de baixa cilindrada na Av. Paulista.
A profusão de bandeiras e slogans nacionalistas, as frases ofensivas (jornalistas vaticinam em programas de rádio que Dilma “expluda”, e no bairro rico de Higienópolis referem-se à Presidente em plena rua, tratando-a por “vaca”). Todavia, é possível que os setores da direita conservadora, presentes no Congresso, também receiem perder o controlo das multidões de rua. Segundo declarou o microempresário Renan Santos (um dos organizadores e dirigente do Movimento Brasil Livre), enquanto no dia 15 de março uma dezena de líderes das bancadas parlamentares apoiaram a iniciativa, na passada semana (12 de abril) indicaram “para não ter mais manifestações. Sentimos uma pressão de vários setores, principalmente de políticos e do mercado financeiro. Antes de 15 de março todos apoiaram. Agora foi diferente” (jornal eletrónico NH - Novo Hamburgo, 14/04/2015).
Pode dizer-se que estão hoje em confronto no Brasil duas tendências opostas, ambas marcadas por valores de classe média: de um lado a obsessão de um mundo feito à medida de um estatuto autocentrado e quase “feudal”, que encara os subalternos como meros servos destituídos de inteligência, ou seja, revindicam para si um pretenso cosmopolitismo de elite, de que os pobres devem estar arredados (segmentos anti-PT); do outro, os novos setores da força de trabalho em ascensão no acesso a uma posição social digna, que se adaptaram a um aparelho de Estado que lhes oferece hoje mais segurança laboral e o horizonte de modelos de consumo “de classe média” (segmentos pró-PT). De um ponto de vista sociológico, o discurso legitimador de cada um desses setores – o da “meritocracia” e “securitarismo” de uns, ou o do “progresso” e do “desenvolvimentismo”, de outros – torna-se, neste contexto, uma mera peça de retórica. O que ambos exprimem é a profunda fratura social que hoje bloqueia o Brasil.