Aí está o "Portugal moderno" que o Governo PSD/CDS tem estado a construir com a política de austeridade e à boleia desta: um modelo de caridade assistencialista para cuidar do Portugal dos pobrezinhos. Na aproximação ao Natal têm-se ampliado iniciativas com este cariz. É a criação de toda uma teia, com ar de filantropia, que o Governo incrementa para consolidar políticas de miserabilismo.
A governação de Passos Coelho e Paulo Portas, através da destruição de emprego e da atividade de milhares de pequenos empresários, da diminuição de salários, pensões e prestações sociais, da distribuição injusta da carga fiscal com forte penalização do fator trabalho, provocou um agravamento de carências na sociedade portuguesa que nenhuma manipulação estatística é capaz de esconder.
Os cidadãos são despidos dos seus direitos, responsabilizados pelas difíceis condições em que se encontram, estigmatizados e desafiados a ser empreendedores. Temos assim um empreendedorismo para pobres em todo o seu esplendor, apresentado como forma moderna de organização e vida em sociedade.
Um punhado de portugueses e estrangeiros apoderaram-se de enorme volume de riqueza, enquanto o Estado vai sendo demitido da responsabilidade de intervir no sentido de impor justiça na distribuição da riqueza gerada, ao mesmo tempo que é transformado num implacável cobrador de impostos sobre os remediados e os que ainda têm qualquer coisita, convidando-os, simultaneamente, ao cuidado solidário dos pobrezinhos.
No passado dia 16 foi publicada, em "Diário da República", a Resolução do Conselho de Ministros n.º 73-A/2014, que cria a "Iniciativa Portugal inovação social" e a "Estrutura de missão", responsável pela sua execução: o Ministério da Segurança Social convertido em Santa Casa Nacional da Misericórdia.
As propostas e mecanismos inscritos nesta resolução são expostos numa linguagem manipuladora, pornográfica e ofensiva para os mais desfavorecidos. É indispensável que este documento tenha uma grande divulgação, que as forças políticas, os sindicatos e muitas outras organizações da sociedade se pronunciem e reajam face aos objetivos ali expostos.
Os destinatários diretos desta "Iniciativa" são "entidades de direito público e privado e entidades da economia social que desenvolvem projetos de inovação e empreendedorismo social". Não tenho dúvida de que existem muitos responsáveis de IPSS e de outras organizações não governamentais (ONG) que jamais compactuarão com a destruição do sistema público de proteção social e a estigmatização e subjugação dos pobres. Mas há um volume de 1,5 mil milhões de euros que vai circular para estruturar o sistema, designadamente "financiamentos de natureza grossista com fundos participados". Isto será muito atrativo!
No ponto 5.b está claro o objetivo de "Dinamizar o mercado de investimento social". É concebível que os direitos mais elementares de proteção social sejam tratados como produtos de mercado?
E o que significa (5.a) "Promover o empreendedorismo e a inovação social... numa lógica complementar às respostas tradicionais"? As respostas tradicionais são o Estado garantir e responsabilizar-se pela existência de subsídio de desemprego para quem está desempregado e pagá-lo, é garantir o RSI apoiado por ações de formação e outras que visam a efetiva inserção social das pessoas, é garantir proteção a todos os que dela necessitam, salvaguardando a sua dignidade. A entrega destas funções a IPSS e ONG, numa proliferação de novas parcerias público-privadas, com um programa de distribuição de "vales de capacitação atribuídos aos destinatários" (2.d), coloca direitos fundamentais das pessoas ao pequeníssimo nível do direito de se alimentarem na cantina de uma daquelas instituições, em troca da obrigação de prestarem um serviço gratuito ou de utilidade prática, prolongando indefinidamente a sua (e a de familiares) condição de pobreza.
Não podemos andar distraídos. Na Constituição da República de 1933, cujas bases vigoraram até abril de 1974, o papel do Estado em matéria de assistência social era essencialmente supletivo. Foi o tempo do Estado Novo, do fascismo e da miséria. A Constituição da República, aprovada em 1976, pôs de lado essa conceção retrógrada e avançou para a implementação do Estado social. Não podemos permitir o retrocesso.