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04-10-2014        Jornal de Notícias

Em poucos períodos da história os portugueses terão sido colocados perante desafios tão difíceis como os que hoje vivemos para nos afirmarmos como povo, como nação, como país com um Estado Soberano.

As dificuldades resultam fundamentalmente de as políticas nacionais se terem tornado em mero subproduto das políticas da União Europeia (UE) e de, por longo tempo, as decisões e opções de responsabilidade exclusivamente nacional terem sido desastrosas.

Uma das consequências da crise que nos atrofia o presente e condiciona o futuro é, sem dúvida, a transformação da natureza da UE. Esta deixou definitivamente de ser um espaço de integração onde aos governos nacionais incumbiam responsabilidades claras sobre áreas decisivas de política para, a pretexto da necessidade de mais governo europeu, a Europa se tornar um colete-de-forças, num “Ocidente” bloqueado e em perigosa decadência. Nesta UE apenas há espaço de poder para a Alemanha e seus satélites, disponibilidade para a concretização de programas de direita e de receitas do capitalismo neoliberal.

O Banco Central Europeu não hesita em ultrapassar o seu mandato para ditar “reformas estruturais” aos governos nacionais – a destruição do Estado Social de Direito Democrático e uma brutal transferência de rendimentos e de poder dos trabalhadores para o capital. A Comissão Europeia debita detalhadas prescrições em domínios que nenhum tratado “federalizou”. Funcionários da Comissão emitem opiniões sobre medidas específicas das políticas de um país, como no caso recente do funcionário que declarou “transitório” o magro aumento do salário mínimo em Portugal. Tudo isto é feito sob a jurisdição de um Tribunal de Justiça da UE que, fazendo juízo em causa própria, assumiu uma supremacia sobre os restantes tribunais que nenhum tratado lhe conferiu.

A UE está a transformar-se numa federação sem democracia, construída às escondidas dos seus cidadãos, mas à custa dos seus direitos e com dramáticos sofrimentos que também atingem povos fora do seu espaço.

Os cidadãos de cada país continuam com o direito de voto, mas cada vez sentem mais que pouca diferença faz em quem votam ou que programa elegem. Por agora é tudo Merkhollândia, com mais ou menos tolerância orçamental. Um governo eleito com uma base programática de submissão ao que está “instituído” vai sentar-se no Conselho Europeu e fazer o que lá for decidido. Tem de obedecer, porque senão o Banco Central dirá: “não há dinheiro”.

O que fica para a política nesta Europa? Concursos de beleza de diverso tipo. Sondagens e participações ilusórias para decidir quem tem melhor imagem para a construção de novas hegemonias, dentro dos condicionalismos pré-definidos. Debates que reproduzem na violência verbal as tricas do futebol que, aliás, ocupam todos os canais de TV, horas e horas todos os dias.

Esta Europa só pode acabar mal. Os que beneficiam deste rumo das coisas continuam com muito poder. Entre os descontentes, que reconhecem os perigos para a Europa e para cada um dos seus países membros que resultam desta deriva, reina a divisão. De um lado, estão os “prudentes” – os que apostam nos caminhos estreitos entre as linhas dos tratados; do outro, os “indignados” – os que justamente rejeitam os termos e as práticas desta UE. Os “prudentes” tendem a transformar-se com facilidade em timoratos, mas também é verdade que os “indignados” correm o risco de parecer aventureiros, se não conseguirem uma melhor clarificação daquilo que propõem, se não forçarem um forte combate ideológico e político, e se não concretizarem um laborioso trabalho de mobilização cidadã.

Antieuropeus são os estrategas e executores da Merkhollândia, não os povos, as forças políticas e movimentos de diversas áreas que combatem a atual situação e buscam soluções mais solidárias, mais justas e partilhadas entre todos os povos e países da UE.

No caso de Portugal, como de outros países, já não haverá soluções só com os “prudentes”. Os “indignados”, com os seus princípios e programas, são tão ou mais necessários que os “prudentes”. Os esforços para conseguir esta articulação de participações constituem a arte da política que nos pode tirar da crise. Cabe ao povo ser o grande artista político coletivo deste processo.


 
 
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Manuel Carvalho da Silva



 
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