Muitos portugueses e portuguesas não têm desarmado na luta pelos seus direitos profissionais, sociais, socioeconómicos, culturais e políticos. Merecem toda a solidariedade e incentivo para que não desarmem. Entretanto, os acontecimentos que marcam os dias que estamos vivendo exigem, da generalidade dos portugueses, uma mais ampla e forte mobilização social e política. Impõem-se a clarificação dos problemas e a salvaguarda dos nossos direitos e interesses, como cidadãos e enquanto povo livre e soberano, com direito a viver em democracia.
A exposição pública dos descalabros da gestão do grupo financeiro/económico (BES/GES), grande referência do regime nas últimas décadas - que nos dá a conhecer apenas uma parte das manipulações que subjugaram interesses do país e do povo à ganância de algumas "famílias", que se movimentam à vontade na promíscua relação entre poder económico e poder político -, permite-nos constatar que: i) a economia portuguesa está sob um efeito dominó que pode ter um impacto brutal pela fragilização de muitas empresas, com o consequente aumento do desemprego; ii) o poder representado pelo todo-poderoso Ricardo Salgado deixa-nos indignados, mas o que surge a substituí-lo tem a mesma génese e vai ser ainda mais difícil de responsabilizar.
Através das privatizações, das dependências geradas pela integração de Portugal na União Europeia e no euro, dos condicionalismos económicos, sociais e políticos que os nossos credores e os agiotas nos impuseram a pretexto da "dívida pública" (que não para de crescer e nos aprisiona), o poder que já está a mandar, e se pretende perpetuar, é ainda mais externo e alheio aos interesses dos portugueses e do país: é o poder anónimo dos mercados globais e o poder pessoal de um pequeno grupo de pessoas, muitas delas sem ligação a Portugal, nem sujeição às suas leis. Não nos iludamos com as ladainhas de analistas políticos e comentadores de serviço que, nos últimos dias, nos procuram convencer que este caso é um abcesso a ser esvaziado e eliminado, para dar oportunidade a um "capitalismo limpo".
O capitalismo que temos no país, na Europa e um pouco por todo o Mundo gerou lideranças económicas, políticas e de formação de opinião que são autênticos sociopatas. Eles não são desprovidos de inteligência, mas têm desprezo pelas obrigações sociais, pelos sentimentos das pessoas. E, não assumem o mínimo sentimento de culpa, mesmo que esteja claro que mentiram, que manipularam, que se disfarçaram para enganar ou roubar.
Será um erro ficarmos apaziguados porque, como diz um meu amigo, Ricardo Salgado deixou de ser sistémico. De facto, ele está a ser empurrado (justamente) por medidas de instituições que não puderam mais esconder o problema, e por senhores que viram os seus interesses em risco. Mas, os graves problemas que o país enfrenta não se resolvem com meras mudanças de patrão. Os sociopatas não se corrigem, mesmo depois de denunciados e punidos, e há sempre no "mercado" um novo sociopata disponível.
Os entraves ao nosso futuro são imensos. O FMI anda a gozar connosco: publicam estudos a reconhecer o fracasso das suas receitas, ao mesmo tempo que impõem a aplicação cada vez mais dura das políticas que nos afundam. O Governo Passos, Portas e C.ª está a fazer colapsar os serviços públicos. Acentuam-se gravemente os problemas no setor da saúde. Na educação, a retórica do "rigor" e da "exigência" é um embuste. A forma provocatória como este Governo trata os professores e as condições de acesso à educação e ao ensino, faz-me recordar o que observei na minha primeira visita à China, em 1983, quando me expunham as práticas indignas e estúpidas que haviam sido seguidas pelo "bando dos 4".
Esta semana o Governo, confrontando com os significativos desvios das metas na Execução Orçamental, lá voltou à carga com o ataque ao Tribunal Constitucional. O Governo toma o serviço da dívida e os privilégios ao capital como variáveis rígidas, para colocar como "inevitável a contenção ao nível da despesa" centrada em cortes salariais, em mais desemprego e na destruição dos direitos sociais fundamentais.
É preciso, de novo e a muito curto prazo, o povo vir para a rua em força e com determinação.