O facto de os portugueses terem recorrido à aquisição de casa própria para resolverem as suas necessidades de habitação tem sido utilizado, pelos mandantes das políticas de austeridade, como "prova" de que o povo andou a viver acima das suas possibilidades. Trata-se de uma manipulação grosseira a exigir persistente denúncia e sério estudo sobre a matéria. O "cancro imobiliário" em Portugal não é pequeno, apesar de poder aparentar o contrário. Corremos o risco de nos virem a ser impostas medidas para o resolver, de forma escondida e com caráter desproporcionado, que agravarão as já imensas dificuldades das famílias portuguesas.
Tomem-se cautelas. A governação neoliberal e antidemocrática que impera em Portugal e na Europa está implacável. Os podres, a corrupção, o compadrio e o roubo organizado (muito "legal"), as teias de interesses que criaram o monstro chamado Grupo Espírito Santo (GES) e o descalabro a que este chegou, deviam levar os governantes portugueses e europeus a pedirem desculpa ao povo por este ter sido obrigado a endividar-se para comprar casa, pela usurpação de salários, pensões, proteção social, direitos sociais fundamentais e democráticos. As causas fundamentais dos problemas com que nos debatemos não estão nos gastos excessivos do comum dos portugueses, mas sim, por exemplo, na podridão do poder financeiro e económico que nos domina.
Foi divulgado ontem pelo Observatório sobre Crises e Alternativas um caderno1 que analisa a "extraordinária transformação quantitativa e qualitativa das formas de provisão de habitação" operada em Portugal nos últimos 40 anos, que traça a evolução do setor da habitação e das políticas de construção. Aí se observa a centralidade que a habitação ocupou na economia e na sociedade portuguesa, a quase absoluta secundarização das políticas de habitação no nosso tardio e pobre Estado providência, bem como uma profunda imbricação entre a estratégia do setor financeiro e os interesses dos setores da construção e habitação.
O sistema financeiro beneficiou, a montante e a jusante, do inflacionamento do setor da construção e da habitação. Logo nos anos 80, a reprivatização do setor financeiro beneficiou da entrega rápida e progressiva da quota de mercado deste setor, que até aí estava quase só nos bancos públicos. Os governos incentivaram o estabelecimento de relações das pessoas com os bancos privados. As pessoas compraram casa porque as políticas públicas e os incentivos, no plano fiscal e noutros, tornaram mais acessível a sua aquisição, e porque o Estado não organizou e fez funcionar um mercado de arrendamento equilibrado e justo.
As políticas de liberalização e desregulamentação dos mercados financeiros seguidas pela UE foram acolhidas de forma entusiástica pelos governos do país e facilitaram o processo de financeirização do setor da habitação. Por outro lado, perante a perda de competitividade da nossa economia, em resultado da criação do euro e de impactos da concorrência internacional, o setor da construção tornou-se uma atividade-refúgio do crédito bancário. O Estado incentivou esta via que lhe permitia esconder o desastre que estava a acontecer com as nossas atividades produtivas, em particular as de bens transacionáveis. Os bancos beneficiaram de acesso a crédito barato a nível europeu e assim desenvolveram uma atividade que lhes permitia "capturar parte dos lucros dos construtores no plano da produção e uma parte significativa dos salários dos trabalhadores com o endividamento hipotecário".
Agora, ao aumento das carências de alojamento das pessoas mais idosas e dos mais pobres, junta-se um número crescente de alojamentos vagos porque as famílias não têm meios para os pagar e o crescimento do incumprimento das obrigações estabelecidas, num contexto em que o Estado está exaurido.
Qual será, na carteira dos bancos, o volume dos ativos imobiliários tóxicos resultantes da especulação que andaram a fazer, de terrenos, prédios e habitações dados como garantias, que hoje pouco valem?
A habitação não é um luxo, mas pagamos as nossas casas com língua de palmo.
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1) Da autoria de Ana Cordeiro Santos, Nuno Teles e Nuno Serra. Disponível em:
http://www.ces.uc.pt/observatorios/crisalt/