Uma grande parte dos cidadãos europeus, por certo a maioria, não votará nestas eleições para o Parlamento Europeu ou optará, em não poucos casos, por um voto provocatório. Não se trata de um simples alheamento ou desinteresse, mas sim de uma atitude de repulsa perante as contradições, as manipulações, o rumo prenhe de perigos que a União Europeia (UE) vem trilhando e se prepara para prosseguir.
Na UE, e em particular em Portugal, os que são eleitos não mandam e assumem (depois de eleitos) que não têm poderes para governar. Os que mandam não são eleitos, troçam do povo e dos seus anseios, menosprezam os eleitos dos "arcos de governação". É comum dizer-se que a abstenção enfraquece a democracia. Mas no nosso país, como em toda a UE é, sem dúvida, o acelerado e amplo enfraquecimento da democracia que vem promovendo a abstenção e o arriscado afastamento dos povos da construção do seu futuro.
As pessoas sentem que vão votar para um Parlamento Europeu (PE) cujo papel principal tem sido o de ratificar consensos feitos pelos poderes dominantes. Quem manda são os mercados, os grandes capitalistas internacionais, as agências de "rating", o Banco Central Europeu, o FMI, a própria Comissão Europeia no seu papel de capataz de todos estes. Poderá dizer-se que os atuais líderes alemães também têm significativo poder. Esse facto atrai para eles personalidades e protagonistas de interesses em diversos países, que não querem perder o comboio do poder, que tudo farão para manter o sistema de privilégios instalados, mesmo que isso sacrifique os povos.
Num tempo de modernidade, onde é universalmente assumido que os seres humanos (ou a "pessoa humana") e as condições de salvaguarda da sua vida futura no planeta Terra devem estar acima de tudo, o problema torna-se ainda mais complicado, pois a instabilização do espaço da UE terá complexas implicações em outras latitudes.
Deve saudar-se a clareza das posições assumidas na última semana pela senhora Merkel, pelo senhor Sarkozy, pelo senhor Juncker. No próximo domingo (25) vamos votar para o Parlamento de uma UE atolada em negações de si mesma, e cujo futuro é uma interrogação maior que o continente a que pertence. Os três pilares sustentadores do projeto - a livre circulação de pessoas, de mercadorias e de capitais - já passaram a dois.
Jean-Claude Juncker - diz-se ser a última referência da "democracia cristã que ajudou a construir o projeto europeu" - já não consegue ir além da afirmação de que para ele "as pessoas são tão importantes como as mercadorias e o capital". Sarkozy, parceiro ativo de Merkel no desencadear do processo de humilhação da Grécia, depois aplicado a Portugal e não só, defendeu o fim dos acordos de Schengen, proclamou que não há condições para a Europa de estados soberanos e iguais, e propôs o futuro do projeto europeu submetido aos interesses económicos, sob a direção da Alemanha e da França. Para ele, como para Merkel, os imigrantes só lhes interessam enquanto peças de uma engrenagem produtiva do capitalismo neoliberal vigente.
A chanceler alemã, para quem a UE "não é uma união social" - afirmação que nega compromissos fundadores da génese da União Europeia - despreza ostensivamente o voto dos povos europeus e manobra a seu bel-prazer o processo de constituição da futura Comissão Europeia e a designação do seu presidente.
Então, num quadro destes, em que a UE aparece em "desconstrução" cheia de perigos, porque votar? Votar por duas razões fundamentais: com o voto rejeitar este rumo; votar para, no plano nacional, forçar caminhos de saída, pois são os portugueses que têm de definir o seu caminho de futuro e há opções de voto que podem ajudar nesse sentido.
Esta semana confirmou-se que: i) mesmo sem considerar a almofada financeira que o Governo andou a construir para a "saída limpa", a dívida não para de crescer; ii) a almofada sai cara aos portugueses e, a qualquer momento, aqueles 23,4 mil milhões de euros acumulados podem ser desencaminhados; iii) a dívida tem mesmo de ser profundamente reestruturada, já o devia ter sido em 2011 e cada dia que passa o garrote mais aperta.
Mesmo com a democracia muito amputada, o voto ainda pode ser arma do povo.