[Le Monde Diplomatique, n.º 90, Abril de 2014]
No tema “Movimento Associativo Perpétuo”, os Deolinda parodiam a tensão esquizofrénica entre a vontade de mudança e a resignação individualista. Às rimas insufladas de determinação para “dar a volta a isto”, contrapõem-se uns insistentes “agora não”, exprimindo diferentes desculpas para adiar o embalo contestatário: é o almoço ou o jantar, o trabalho ou um engarrafamento, o jogo do Benfica ou a chuva lá fora, a falta de um impresso ou uma súbida dor de barriga. Se o lado solar da canção nos fala da liberdade, da união e da confiança no futuro, o remate final, desfiando um contínuo “vão sem mim, que eu vou lá ter”, ironiza o retraímento de quem, suspeitando da capacidade transformadora do coletivo, evita assumi-lo diretamente e justifica a ausência do pulsar social com os pequenos pretextos do dia-a-dia.
Esta desistência de se inscrever no real foi frequentes vezes imaginada como uma espécie de ancestral fado lusitano. Nesta leitura, o país seria habitado por cidadãos e cidadãs cujas estratégias de relação com a sociedade e com os outros passariam sobretudo pela “chico-espertice”, pela “pequena inveja” e pela vontade primeira de tratar da “vidinha”. José Gil foi quem articulou, com particular sucesso, esta visão de um Portugal “sem espaço público”, com uma cidadania passiva e anémica, e onde o lastro profundo de um medo enraizado criava um país em que “nada acontece que marque o real, que o transforme e o abra” (1).
Razões históricas ajudarão a explicar a persistência de lógicas de evitamento da participação cívica (e também - mas isso seria outra conversa - os discursos pessimistas sobre o imobilismo nacional). A longa vigência da ditadura tem nisso um peso evidente. É certo que os atavismos estruturais do país e a menoridade política e social a que estava condenada a imensa maioria da população resultam, em alguns casos, de dinâmicas que o Estado Novo mais não fez do que aprofundar. Mas a demonização da intervenção política, que a frase “a minha política é o trabalho” tão bem exprime, os interditos à livre constituição de associações, partidos, cooperativas e sindicatos e os impedimentos ao seu desenvolvimento não tutelado, bem como um rol extenso de restrições interiorizadas, deixaram algumas marcas de “estranhamento” relativamente à participação - sobretudo se virada para acções de alcance social e político mais evidente - em segmentos consideráveis da população.
Expressamente elencada no Programa do Movimento das Forças Armadas (MFA) e consagrada constitucionalmente em 1976 (2) , a liberdade de associação teve uma espécie de veio cruzado de legitimação durante o período revolucionário de 1974-76. Ao mesmo tempo que a lei enquadrava a participação popular, ela acontecia, na prática, através da multiplicação de associações, partidos, cooperativas, comissões e coletividades de diferente tipo. A Revolução foi – também e sobretudo – isso: os movimentos organizados, mais ou menos espontâneos, que insuflaram de vitalidade o espaço público e corporizaram ações e discursos em que foi conferido um lugar social relevante ao coletivo, pondo em causa regimes de propriedade, relações com o Estado ou seculares hierarquias sociais.
Nos últimos anos, porém, estudos existentes revelam que a participação associativa em Portugal é baixa em comparação com o que se passa na generalidade dos países europeus ocidentais (3) . Estes dados revelariam assim uma democracia de baixa intensidade e um maior desinteresse das portuguesas e dos portugueses pela vida coletiva. Para além de outras questões metodológicas, interessaria questionar quais as modalidades de participação que ficam de fora deste olhar concentrado nas formas de participação associativa convencional. Se é verdade que a conquista recente do direito de livre associação e as sequelas da ditadura deixaram lastro, também é certo que a filiação em associações formalizadas - diferentes entre si e onde o próprio empenho regista distintas intensidades - não poderá levar a conclusões diretas e genéricas sobre a disponibilidade para a participação.
Por outro lado, é expectável que os tempos sombrios que atravessamos tenham efeitos na disponibilidade dos cidadãos e das cidadãs para participarem em estruturas associativas. Nessa medida, a crise e a austeridade não introduzem apenas um plano de empobrecimento económico mas um processo mais amplo, esvaziando a democracia, contraindo o dinamismo social e, nessa medida, produzindo constrangimentos vários à vida associativa. Em primeiro lugar, boa parte das associações, sobretudo aquelas que sobrevivem através de apoios públicos, vêem hoje a sua existência ameaçada com a diminuição das ajudas e dos subsídios. Em segundo lugar, os cortes salariais, o desemprego, a precariedade como modo de vida e a emigração forçada fazem com que seja cada vez mais difícil e intermitente o empenho em coletivos e associações.
Por fim, importa ainda realçar os efeitos perniciosos que tem o discurso segundo a qual a austeridade é a única política aplicável. Como consequência, a organização popular – que persiga um impacto que não seja meramente endógeno, que busque no fundo algum tipo de mudança social, mesmo que de alcance local – tende a ser desmobilizada por esta narrativa da inevitabilidade. Mesmo que nos organizemos e nos empenhemos coletivamente, diz-nos a ideologia dominante, a eficácia disso é muito duvidosa. E, no entanto, é essa confiança relativamente à possibilidade de agirmos em conjunto, e de isso produzir efeitos mesmo que a uma escala restrita, que precisamos de restaurar para fazer frente a uma sociedade castigada, desiludida e fragilizada.
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1) José Gil (2004), Portugal, Hoje – O Medo de Existir. Lisboa: Relógio d’Água, p. 43.
2) O artigo 46 da CRP garante o direito dos cidadãos a se filiarem em associações já existentes ou constituírem, sem impedimentos, novas estruturas; estipula que estas podem autogovernar-se sem ingerências do Estado; e garante que os cidadãos não podem ser coagidos a entrar ou permanecer numa associação contra sua vontade. Indicam-se, ao mesmo tempo, limites à constituição de associações de tipo militar, que tenham como propósito a promoção da violência ou que perfilhem ideários racistas ou fascistas.
3) É o caso dos resultados expressos no Eurobarómetro 73.4. In <http://www.sociologiadip.unimib.it/sociodata/wp-content/pdf/SI292_NM_eng.pdf> Consultado a 31 de Março de 2014.