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02-05-2014        Diário de Notícias

Há um síndrome de read my lips que infeta a governação neoliberal na Europa. O uso da mentira pelos governos europeus e pelos aspirantes a substituí-los cumprindo o cânone deixou de ser um recurso de circunstância e tornou-se numa condição de fundo. A mentira é hoje um ingrediente essencial da governação das democracias limitadas em que vivemos. Na União Europeia do nosso tempo, os programas que nos governam de facto não vão mais a votos – fossem e seriam cilindrados. As troikas não são eleitas – e, no entanto, são elas que nos governam. Ao contrário, os governos que vão a votos não nos governam e os programas que submetem ao juízo do eleitorado têm pouco a ver com as políticas que, uma vez eleitos, põem em prática. Como Bush pai na Convenção Republicana de 1988 que o nomeou para candidato à Casa Branca, quem busca a eleição proclama “leiam os meus lábios: não haverá mais impostos”. Sabemos todos – a começar pelos próprios – o que isso quer dizer sobre o dia seguinte.

Há quinze dias, Passos Coelho assegurou ao país que, para cumprir a meta de défice de 2,5% em 2015, o Governo não adotaria “medidas que incidam em matéria de impostos, salários ou pensões”. O resultado da jura foi subida do IVA, subida da parte da taxa social única paga pelos trabalhadores e mudança de nome da contribuição especial de solidariedade. Da “enorme subida de impostos” de Gaspar passámos para o “aumento mais pequeno possível” de Albuquerque. Só que este se soma àquela. E, cinismo máximo, o Governo promete começar a repor os cortes de salários e pensões em 2015 com um horizonte de cinco anos. Mas não diz que só tem previsão concreta para 2015 (e mesmo essa com efeitos anulados pela subida de impostos).

O próximo episódio, tudo o indica, será a rábula da saída limpa. A barragem comunicacional de moldagem da verdade está preparada. Virá o discurso do sucesso. Virá o discurso da prova de confiança dos credores na correção do caminho percorrido. Virá até o elogio à heroicidade do povo – “o melhor povo do mundo”, como dizia Gaspar – pela demonstração de ter compreendido que a auto-flagelação dá saúde e faz crescer.

Ficarão por dizer duas coisas. A primeira é que, a confirmar-se a saída limpa, ela fica a dever-se à relutância da União Europeia em passar a imagem de insucesso do seu programa para Portugal e à recusa dos nossos parceiros (?) comunitários em nos garantir crédito se os mercados espirrarem. Não é por não precisarmos de almofada contra as turbulências do mercado que não teremos programa cautelar, é porque os ricos desta Europa sabem que o mínimo tremelique dos mercados é um tremor de terra para uma economia com uma dívida que em vez de diminuir cresceu e por isso não estão para arcar com o risco de nos servirem de avalistas. Ou, para estarem, exigem-nos coiro e cabelo. Foi assim com a Irlanda e não foi outra a razão da saída à irlandesa.

A segunda coisa que não nos será dita é que o suposto sucesso da saída limpa é apenas o pórtico para mais e mais austeridade. Ou seja, o que não nos será lembrado é que não é preciso programa cautelar para nos serem impostos mais pacotes de austeridade. Para que isso aconteça nos próximos trinta anos, basta-nos o cumprimento do Tratado Orçamental.

No meio das juras de europeísmo convicto, a maioria governamental e os demais europeístas convictos encarregar-se-ão de pintar de sucesso esse caminho de décadas de austeridade e de crescimento sempre medíocre da nossa economia. Em cada campanha eleitoral, na exata medida em que se avizinhem mais “medidas” – disfarce retórico de mais austeridade – hão de repetir a ladainha do sucesso, da retoma à vista, do resgate da nossa independência, bla bla bla. E nós perceberemos bem o seu discurso: read my lips.


 
 
pessoas
José Manuel Pureza



 
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