Nenhum tempo novo, ou “nova era”, nos surge oferecido, muito menos a partir das ideias, teorias e práticas dominantes, nos quadros de valores, dogmas e instituições que caminham para o colapso. Trata-se sempre de uma construção humana resultante da ação (ou inação) que os indivíduos assumem individual e coletivamente, desbravando caminhos teóricos e ensaiando práticas, à partida minoritárias e adjetivadas negativamente.
O debate sobre a reestruturação da dívida está fazendo o seu caminho. Trata-se de uma questão política de grande prioridade, em Portugal e noutros países. Ela há de tornar-se posição defendida por uma maioria nova, por muito que os poderes dominantes ou quem lhes quer ser simpático vociferem e insultem.
Uma análise atenta aos tempos que vivemos mostra-nos que: i) estamos num Mundo prisioneiro de cada vez mais riscos, gerados por bloqueios e contradições de um sistema político injusto, por um estilo de vida de parte da população que é insustentável, por uma competitividade irracional e por uma ganância incontrolada; ii) as pessoas são todos os dias convidadas a jogar a sua vida num Casino às escuras e obrigadas a jogar com cartas viciadas; iii) somos parte de uma União Europeia (UE) e vivemos num país onde se desenvolve uma guerra aberta – a arma mais utilizada é o medo, o poder que comanda é o financeiro e os governantes de serviço comportam-se como seus mercenários.
À Grécia, no chamado 1.º resgate foi concedida uma verba de 130.000 milhões de euros. Várias organizações internacionais observaram o destino desse volume de dinheiro e chegaram a esta conclusão: 52% do total da verba regressou rapidamente aos bancos internacionais credores; 23% retornou aceleradamente ao Banco Central Europeu (BCE); 20% desaguou nos bancos gregos; apenas 5% ficou nos cofres do Estado para ajudar a resolver problemas da sociedade. Entretanto, em 20 anos, os gregos terão de assegurar o pagamento dessa dívida que no final totalizará 274.000 milhões de euros. É repugnante.
Importa ver em pormenor o que está a acontecer com o “resgate”, a “ajuda”, que foi feita a Portugal. Já sabemos que com “saída limpa” ou debaixo de “programa cautelar”, o pagamento que nos está destinado será mesmo pagamento à grega.
Quanto do dinheiro emprestado foi de facto para salários e pensões como tanto propagandeiam os que nos bloqueiam na tese da inexistência de alternativa, que caluniam aqueles que questionam as políticas e lutam pela construção de alternativas? Dirão alguns: então não vês que o dinheiro veio para pagar as nossas dívidas, de forma a que tenhamos condições de continuar a ter salários e pensões?
Mas, há alguma hipótese de se viver fazendo novas dívidas para pagar dívida, com juros e prazos insuportáveis, com o dinheiro emprestado a ser captado em prazos curtos, impondo empobrecimento e diminuição de capacidade de produzir riqueza? O que fizeram ao longo da história os usurários, senão práticas destas?
O BCE é uma entidade pública. Porque coloca dinheiro no sistema financeiro privado a taxas de 1% ou menos e obriga os Estados, como Portugal, a pagar taxas superiores a 5%?
Esta “realidade” e estas práticas são únicas e inevitáveis? Os problemas e as condições de vida dos milhares de burocratas que sustentam e determinam as orientações práticas das estruturas europeias têm alguma identidade com o sofrimento de quem não tem emprego ou é obrigado a brutais regressões na sua vida?
É evidente que a reestruturação da dívida choca com o que está instituído na UE. Mas a UE é uma construção política. Pode e deve-se trabalhar para fazer profundas mudanças nas suas instituições e estruturas; alterar Tratados, como o Tratado Orçamental e outros; assumir as fraturas estruturais intraeuropeias e resolvê-las.
Temos eleições europeias à porta, a “realidade” que há a discutir, sem paninhos quentes, é a vida concreta das pessoas, que está cada vez pior e depende simultaneamente das políticas nacionais e europeias. Não aceitemos ficar a discutir enganos e mentiras camufladas em números manipulados.
Questionar a crise e, acima de tudo, forçar a discussão de alternativas. Forçar a transformação da desgraçada “realidade” que nos vem sendo imposta.