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14-03-2014        Diário de Notícias

Dantes, escrever sobre um ano futuro distante era um puro exercício de ficção em que a realidade conhecida ficava arrumada a um canto e era apenas usada como terreno de germinação de fantasmas plenamente potenciados na imaginação ficcional do tal ano futuro. George Orwell fê-lo de forma notável em “1984”, Bolaño mais ainda em “2666”.

Há agora uma narrativa de ficção sobre o futuro que está aí a ser contada aos portugueses. Chama-se 2035 e tem como centro da intriga o cumprimento escrupuloso do Tratado Orçamental que a maioria governamental e o PS aprovaram pressurosamente como penhor de um país bom aluno e grato aos seus mestres disciplinadores. O enredo é conhecido: para cumprir as metas estabelecidas pelo dito Tratado Orçamental, designadamente o rácio de 60% do PIB para a dívida pública, o país terá não só que manter toda a política de austeridade que já lhe foi imposta como acrescentar-lhe mais outro tanto durante os próximos vinte anos. Ou seja, até 2035. Só assim se conseguirão os excedentes de 3% ao ano matematicamente imprescindíveis para cumprir aquele objetivo que os aprovadores do tratado lhe amarraram sem remissão.

2035 segue portanto a estratégia ficcional de Orwell. Do presente retém os traços de horror económico e de destruição de princípios de organização social como o da dignidade, o da coesão ou o da centralidade do contrato social. E confronta-nos com um futuro onde esses traços são potenciados até ao grotesco. Excedentes anuais de 3% para cumprir o Tratado Orçamental supõem, por exemplo, a deserção quase completa do Estado do campo da saúde, que fica a ser totalmente paga pelas pessoas e pelas famílias. Ou uma subida ainda muito mais agravada da carga fiscal sobre o trabalho, ultrapassando o limiar da absoluta insustentabilidade das vidas comuns. É desse futuro medonho, feito do agravamento indizível do nosso presente, que nos fala 2035.

É uma obra coletiva, com capítulos da autoria de Passos Coelho, de Paulo Portas e de vários outros autores e com organização e prefácio de Cavaco Silva. O organizador e prefaciador passa-nos o essencial do argumento da obra: cumprir sem pestanejar os ditames de Bruxelas é o maior dos desígnios nacionais e isso há de ser assim até 2035. O pós troika é a continuação da troika por outros meios. Ou pelos mesmos mas mais fortes.

Por ser assim, diz-nos Cavaco Silva, é de toda a conveniência que se firme um acordo entre a atual maioria e o Partido Socialista. Cavaco retoma assim a tese de “que se lixem as eleições”. Conveniente mesmo era que não houvesse essa maçada até 2035 para que a linha consensual – a sua, naturalmente – governasse sem ser minimamente questionada (sabe-se como questionar os governos causa nervoso miudinho aos mercados…). O enésimo apelo de Cavaco ao consenso entre a maioria e o PS e o queixume de que Portugal é um país estranho porque Governo e oposição não se entendem sobre essa coisa cristalina que é a completa similitude entre a troika e o pós-troika, são o guião de toda a narrativa de 2035.

Não surpreende que os autores desta ficção do horror tenham evidenciado o maior dos nervosismos com o aparecimento de uma narrativa rival que antecipa um exercício contra-factual à narrativa de 2035. A coisa é simples: para ser best-seller, 2035 alimenta-se da ficção de que o presente de horror súbito só pode dar lugar a um futuro de horror permanente. Foi isso que 70 outros autores vieram negar, pondo também em farrapos a lenga-lenga de Cavaco de que a desgraça de Portugal é a falta de consenso para se cumprir a sua profecia negra de 2035. Consenso afinal há. Mas é para evitar que 2035 se cumpra como horror.


 
 
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José Manuel Pureza



 
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