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07-03-2014        Diário de Notícias

Se for verdade que a guerra é a continuação da política por outros meios, como sentenciou Clausewitz, não é a verdade inteira: também a política pode ser a continuação da guerra por outros meios. Sobretudo neste tempo em que as declarações solenes de fim das guerras não são mais do que momentos de reconfiguração das ditas que continuam por muito mais tempo, ainda que noutras vestes.

A guerra fria não terminou, mesmo que tenha sido declarada extinta em 1989 sobre os escombros do Muro de Berlim. E nem foi preciso a guerra de cinco dias na Geórgia para o provar. As revoluções coloridas que foram mudando as cores políticas do espaço pós-soviético já o tinham mostrado à saciedade. Porque, sendo expressões genuínas de protesto, social e politicamente muito heterogéneo, contra regimes autocráticos de perpetuação das novas nomenklaturas, essas revoluções foram invariavelmente financiadas, equipadas e politicamente suportadas pelos Estados Unidos e pela União Europeia.

A disputa da influência sobre o espaço pós-soviético foi pois, desde 1989, a continuação da guerra (fria) por outros meios. Nessa disputa, a União Europeia assumiu-se e foi assumida como referência sedutora, promessa de prosperidade económica e de cumprimento de todas as fantasias consumistas, a que acrescia a chancela internacional de transições democráticas de baixíssima densidade e a garantia de segurança contra qualquer tentação revanchista da Rússia. O redesenho foi-se processando paulatinamente, primeiro a coberto da falência do Estado russo e depois sob o compromisso de manutenção do status quo do anel de proximidade imediata da Rússia. A quebra desse compromisso teve um primeiro ensaio em 2008 na Geórgia e a isso a Rússia respondeu com cinco dias de metralha e o apoio estratégico à secessão da Abcásia, da Ossétia do Sul e da Tansnístria.

Agora disputa-se a Ucrânia. Ou seja, disputa-se um mercado de mais de 40 milhões de pessoas, disputa-se um importante produtor de alimentos e disputa-se um território até agora nevrálgico para a passagem do gás da Rússia para a Europa. É uma disputa entre credores. Por um lado, a Rússia quer aglutinar a Ucrânia no seu projeto de integração regional – a Eurásia – juntando-a à Bielorrússia, ao Kazaquistão e à própria Rússia. E como a um país falido não é preciso prometer mundos e fundos para o cativar, bastou a promessa de um crédito de 15 mil milhões de dólares e a baixa substancial do preço do gás natural para Kiev se inclinar para esse lado. Por outro lado, a União Europeia – leia-se, a Alemanha – quer atrair a Ucrânia como mercado e já anuncia a bem nossa conhecida ‘inevitabilidade de reformas estruturais’.

É esta vampirização da Ucrânia pelas potências que está em jogo por estes dias. Nesse jogo só há uma certeza: os ucranianos sairão sempre a perder, seja qual for o credor que lhes couber em sorte. Haja ou não divisão do país em dois, prevaleça a política como continuação da guerra por outros meios ou prevaleça a guerra como continuação da política por outros meios, aos ucranianos será só dada a mais sórdida das escolhas: entre o sufoco das liberdades às mãos dos tiranetes de turno e o sufoco das vidas às mãos dos tecnocratas das reformas estruturais. A tragédia dos povos da Ucrânia é essa mesmo: a História fez deles peões de um jogo jogado sempre por outros. Que para qualquer desses outros a guerra ou a política – ou seja, a guerra quente ou a guerra fria – sejam apenas escolhas técnicas para obterem os mesmos resultados, só acrescenta tragédia ao horizonte das gentes da Ucrânia.


 
 
pessoas
José Manuel Pureza



 
temas
Ucrânia    guerra fria    UE    política externa    Rússia