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28-02-2014        Diário de Notícias

Astor Piazzolla, Carlos Paredes e Paco de Lucía são património da humanidade. Todos os artistas o são, de alguma maneira. Mas estes três são-no de um modo especial. Cada um deles, além de compositor genial e de intérprete virtuoso, condensou na sua obra os dois maiores desafios que estão lançados à humanidade no nosso tempo.

O primeiro desafio é o da combinação fecunda entre identidade e diálogo intercultural. Os puristas nunca perdoaram a Paredes, a Piazzolla ou a Paco de Lucía a ousadia de terem abanado os cânones do fado, do tango ou do flamenco. Os guardiões da tradição são sempre almas sisudas, incapazes de se porem em causa aceitando que não há tradições acabadas, há só construções e reconstruções permanentes. Os maiores amigos desses sisudos guardiões da (sua visão da) tradição são os estereótipos que uniformizam as culturas, que as descrevem como se fossem realidades monobloco, que as enunciam num ponto parado na História e repudiam qualquer noção de movimento e de transformação. E sobretudo de diversidade interna. Ora aquilo a que chamamos cultura – e que outros, mais perigosamente, apelidam de alma de um povo – é sempre uma combinação entre raízes e transgressões, entre conservação e mudança, entre fechamento defensivo e abertura ao diálogo. Todas as culturas são feitas de tensão permanente entre esses dois lados.

O fechamento etnocêntrico, pai de todos os integrismos, destruir-nos-á ao mesmo tempo que se entrincheira cheio de convencimento da sua razão superior. Paco, Paredes e Piazzolla estiveram sempre na contramão desse fechamento ignorante e estúpido. Foram mestres do arrojo, abrindo as tradições em que foram formados ao ar fresco dos diálogos com quem, noutros lugares, queria caminho e não quarto escuro. E quanto mais dominaram e amaram a tradição, mais a expuseram ao repto dos contrapontos. “Não tenho medo que se perca a essência do flamenco” disse Paco de Lucía. Ele, que fez Joaquin Rodrigo levantar-se para o abraçar pela sua interpretação do Concerto de Aranjuez, foi sem medo em busca de sonoridades gémeas, de afinações desafiadoras, das linguagens indisciplinadas do jazz ou da música árabe. “Não se perdeu nada, ganhou-se” – concluiu com razão. O bandoneón de Piazzolla ou a guitarra portuguesa de Paredes foram ferramentas dessa mesma procura de respiração, sem nenhuma vontade de estandardizar ou de fundir mas antes com uma fome insaciável de descobrir e de dialogar. De caminhar para dar força às raízes e não para as secar com o esquecimento. “Yo sólo quiero caminar / como corre la lluvia del cristal / como corre el río hacia la mar”…

O segundo desafio é o da resistência à globalização uniformizadora contrapondo-lhe a estima pela diversidade. Neste tempo de tanto etnocídio e de tanto esteticídio, a grandeza de Piazzolla, de Paredes e de Paco de Lucía não foi a de afirmarem novas músicas globais, devidamente liofilizadas e adocicadas para se poderem juntar ao repertório canónico. Não, a milonga de Piazzolla é genial porque ela transpira Buenos Aires por todos os poros, a buleria de Paco é única porque é orgulhosamente cigana sem transigências e as variações de Paredes são assombrosas porque ali está Coimbra e Lisboa e só por isso é que está o mundo inteiro. A diferença assumida, a margem sem arrependimentos nem complexos de inferioridade, a qualificada disputa do cânone – isso fez de Paredes, Paco e Piazzolla referências grandes da nossa humanidade. E sempre, sempre a alternativa do Sul, do Sul andarilho, do Sul sensual, do Sul magoado, do Sul outro e por isso sábio. Aquele que Piazzolla musicou para a eternidade: “Sueño el Sur / inmensa luna, cielo al reves / busco el Sur / el tiempo abierto, y su después”.


 
 
pessoas
José Manuel Pureza



 
temas
tango    fado    paco de lucía    Astor Piazzolla    flamenco    globalização    Carlos Paredes