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14-02-2014        Diário de Notícias

A apologia do movimento é porventura o traço mais forte do discurso legitimador da globalização. As leituras que a entronizam costumam realçar o encurtamento do tempo e do espaço como um privilégio do nosso tempo e os mais entusiasmados realçam mesmo que ao mundo fixista dos espaços se substitui cada vez mais o mundo dinâmico dos fluxos. Os encantados com esta globalização põem o acento na circulação e no derrube dos obstáculos a ela como a marca do tempo. E, no entanto, para os pobres das periferias nunca houve tantas fronteiras, tantos checkpoints nem tantos muros à sua circulação.

O capitalismo global vive hoje dessa tensão entre a apologia da maximização da circulação dos capitais e a contenção da circulação global de trabalhadores. Invocando razões de segurança (a ameaça da infiltração terrorista) ou indo mais diretamente ao assunto e invocando abertamente a proteção dos nacionais contra a concorrência dos estrangeiros com salários mais baratos, o centro rico faz da contenção das periferias a sua estratégia nestes tempos de globalização desreguladora. E, para o efeito, opta tanto por fechar fronteiras (com muros físicos como com muros legais) como por intervir nas periferias de modo a que a pobreza seja tratada como um problema local e não atravesse fronteiras, mesmo se as suas causas são transfronteiriças.

O referendo do passado domingo na Suíça – que prolongou no tempo os efeitos da cláusula de salvaguarda dos acordos com a União Europeia ativada em abril de 2013 – é uma expressão acabada desta adoção crescente da contenção das periferias como traço do nosso tempo. É claro que a Suíça – como a França, como os Estados Unidos ou como Portugal – é o que é porque recrutou centenas de milhar de imigrantes quando deles precisou para os trabalhos que os suíços não estavam dispostos a realizar. É um facto que há setores inteiros – como a construção, a indústria farmacêutica, os cuidados básicos de saúde ou a produção de máquinas para exportação – que dependem do trabalho de imigrantes. É sabido que os famosos túneis ferroviários dos Alpes foram construídos por trabalhadores italianos, muitos dos quais morreram nessas obras. Fosse o reconhecimento a questão central para os governos e o estreitamento das quotas de imigração seria uma pura patifaria. O CDS – que há anos fez da limitação das quotas de imigração a sua bandeira política – e os membros do governo do PS que em 2009 lhe fizeram a vontade, devem saber bem, neste momento em que tal garrote se vira contra os portugueses, o que são esses tormentos da memória…

A verdade é que, nesta Europa, o reconhecimento e a memória são coisas descartáveis. O que conduz as políticas migratórias é antes, cada vez mais, o medo estúpido que se alimenta de perceções distorcidas da realidade. Neste caso concreto, o problema é a combinação explosiva entre a crise salarial, o desemprego e a falta de horizontes que rodeia a Suíça e perceção disso como ameaça ao modo de vida das pessoas na Suíça. A resposta, dada no referendo de domingo, é a mais irracional de todas. Irracional por ignorar o passado e irracional por ignorar o presente: a Suíça depende da União Europeia para 62% das suas exportações e para 79% das suas importações. Irracional, portanto, por, ao ignorar o passado e o presente, hipotecar interna e externamente o futuro da Suíça.

O referendo suíço é um desafio à União Europeia e ao seu discurso sobre a liberdade de circulação como pilar da construção europeia. Desgraçadamente, uma Europa que, desde Maastricht, sacraliza a circulação dos capitais e policia a circulação de pessoas, fará tudo para não causar melindre ao poder da banca suíça mesmo se isso a levar a assobiar para o lado diante dos ataques às outras liberdades propaladas.


 
 
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José Manuel Pureza



 
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