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07-02-2014        Público

A espionagem deliberada praticada pelas autoridades australianas, a ser reconhecida, retirar-lhes-á o argumento de terem agido de boa-fé.

Andam agitadas as águas no Mar de Timor. Este mês começou a ser julgada no Tribunal de Justiça Internacional (TJI), em Haia, uma acção de arbitragem desencadeada por Timor-Leste ao abrigo do Tratado do Mar de Timor. Ainda antes de entrar na substância da material, o TJI teve de se debruçar sobre uma queixa prévia, uma vez que a Austrália, antecipando-se ao que se iria passar, promoveu algumas acções que põem em causa direitos de defesa de Timor-Leste.

Assim, a Organização Australiana de Serviços Secretos (ASIO) apreendeu documentos na posse da equipa de advogados encarregados de defender os interesses timorenses, incluindo vários protegidos pelo direito de confidencialidade nas relações entre advogados e seus clientes. Por outro lado, a residência da testemunha-chave apresentada por Timor-Leste foi alvo de uma rusga, e o seu passaporte confiscado, impedindo desta forma a sua deslocação a Haia para depor. O Procurador-Geral justifica a acção com o argumento de que se destinaria a prevenir a potencial identificação de actividades e agentes dos serviços de inteligência, mas não consegue afastar a ideia de que no mesmo golpe se atingem os direitos de defesa de Timor-Leste.

A argumentação timorense assenta na denúncia – que o Tribunal julgará se tem fundamento credível – de espionagem ilegal das autoridades timorenses por ocasião das negociações que conduziram à assinatura de um tratado entre as partes. Para esse fim, a Austrália terá colocado escutas em gabinetes governamentais timorenses, usando a sua agência de cooperação internacional, a AUSAID, como capa do processo, evidenciando que se tratou de uma acção deliberada e não de qualquer subproduto de uma rotineira escuta de comunicações. Terão sido equipamentos oferecidos a Timor-Leste no âmbito da cooperação a ser manipulados pelos serviços secretos – fazendo assim pairar uma nuvem de suspeição sobre toda a actividade de cooperação. Espiar as autoridades timorenses terá oferecido à Austrália uma vantagem comercial indevida. Com base nesta acusação, Timor-Leste – que tem visto no incidente um grave atentado à sua soberania, que concita uma unanimidade de posições dos vários sectores políticos – pretende obter to TJI uma resolução que invalide o tratado e permita a reabertura de negociações sobre a material contemplada no mesmo, à luz da lei internacional. De que se trata, afinal?

Timor-Leste e a Austrália não possuem uma fronteira claramente demarcada. Apesar disso, várias negociações permitiram obter acordos que autorizam a exploração de recursos naturais no Mar de Timor, e estabelecem modalidade de divisão dos respectivos proventos.

Em 1972, a Austrália estabeleceu um acordo muito favorável com a Indonésia, a que Portugal se recusou a juntar, preferindo aguardar o resultado das negociações internacionais que culminariam em 1982 com a Convenção da ONU sobre Direito do Mar (UNCLOS). A recusa de Portugal aderir ao acordo de 1972 criou uma espécie de “buraco” que recebeu a designação de “Timor Gap” na fronteira australo-indonésia. Em 1989, a Austrália e a Indonésia celebraram um acordo para a exploração dos recursos do Timor Gap, na base 50/50, numa chamada “Zona de Cooperação”. Portugal opôs-se a este acordo, mas o facto de a Indonésia não reconhecer a autoridade judicial internacional impediu que tal oposição tivesse sentido prático.

A independência de Timor-Leste em 2002 abriu as portas para que se procedesse a nova negociação. Nesse intervalo, a lei marítima internacional havia progredido significativamente no sentido de estabelecer fronteiras no ponto médio entre dois estados, abandonando o princípio das plataformas continentais em que se baseava a pretensão australiana – que no entanto aderira à Convenção em 1994. Este foi aliás o princípio usado pela Austrália para determinar a sua fronteira com a Nova Zelândia em 2004. Mas, antecipando a independência timorense, a Austrália abandonou a Convenção no início de 2002, dificultando a resolução de disputas no âmbito que esta definia, e que se traduziam no reconhecimento da jurisdição do TJI.

Na sequência da independência, a antiga “Zona de Cooperação” foi rebaptizada como Joint Petroleum Development Area (JPDA), e Timor-Leste (que poderia aspirar a ter total controle sobre a mesma) ficou com 90% dos seus rendimentos. De fora ficaram outros campos mais importantes, como o Greater Sunrise.

Num novo documento intitulado Certain Maritime Arrangements in Timor Sea Treaty (CMATS), ficou decidido que 20% do Greater Sunrise cabiam na JPDA, e que nos restantes 80% se observaria uma partilha igualitária de rendimentos. Uma condição, porém, estava por detrás deste acordo: é que Timor-Leste abdicava de reivindicar, por um prazo de 50 anos, a definição da sua fronteira marítima com a Austrália (período mais alargado do que o prazo estimado de vida útil destes campos petrolíferos). Não dispondo da opção de uma arbitragem internacional em virtude da saída da Austrália do sistema de resolução de disputas, Timor-Leste aceitou o CMATS em 2007, prescindindo da determinação de uma fronteira a meio caminho entre as respectivas costas, que colocaria uma percentagem substancialmente maior dos recursos petrolíferos do seu lado.

O que Timor-Leste deseja, com a actual acção judicial, é que seja aplicado um princípio reconhecido pela Convenção de Viena sobre Tratados Internacionais, que estipula que a sua validade depende de terem sido estabelecidos com “boa-fé”. A espionagem deliberada praticada pelas autoridades australianas, a ser reconhecida, retirar-lhes-á o argumento de terem agido de boa-fé. Se se provar que o fizeram com o intuito de obter ganhos comerciais ilícitos, então o argumento ainda ganharia maior força. Obtendo ganho de causa, abrem-se as portas a uma nova negociação sobre a divisão de proveitos no Mar de Timor.

Trata-se de uma opção arriscada para uma nova nação, sobretudo dado que a efectiva exploração dos recursos naturais pressupõe uma definição clara dos termos em que pode ocorrer, e uma negociação deste tipo poderia adiar significativamente o recebimento de rendimentos que são críticos para o desenvolvimento nacional. Por outro lado, a força da argumentação australiana, baseada no princípio das plataformas continentais, tem recuado significativamente nos últimos anos, e abrem-se assim perspectivas para que uma melhor acordo possa vir a ser alcançado. Para uma jovem nação tão dependente deste recurso finito para combater a pobreza e fomentar o seu progresso, o que está em jogo em Haia é de suprema importância. Não está em causa o princípio da partilha de recursos que legitimamente possam ser considerados comuns – mas tão só abrir a porta para que se encontre uma solução consentânea com o direito internacional e que represente uma partilha justa e equilibrada desses mesmos recursos. Ainda bem que a via escolhida por Timor-Leste para cumprir esse desiderato tenha sido a das instâncias jurídicas internacionais. Oxalá justiça venha a ser feita.


 



 
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