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24-01-2014        Diário de Notícias

Está aí o discurso da vitória da austeridade. Durão Barroso proclama que a crise do euro terminou e que a austeridade valeu a pena. Olli Rehn diz o mesmo dia sim dia não. Passos Coelho e os opinadores pró-governamentais fazem da diminuição do número de desempregados inscritos nos centros de emprego, causada pela emigração e pela saturação de quem desistiu de procurar emprego, um sinal da vitória certa e de que a coisa entrou nos carris. Paulo Portas anuncia a retoma da soberania contra os bárbaros da troika que ele certamente abomina. Neste discurso apologético a posteriori da austeridade, a Irlanda ocupa um lugar crucial. O “caso irlandês” é invariavelmente apresentado como um caso de sucesso, a prova empírica que faltava de que um ajustamento estrutural sem pieguices devolveu a saúde e a força a uma economia em farrapos. A tal ponto, dizem-nos, que não foi sequer necessário um programa cautelar após a saída da troika e a Irlanda pôde optar por uma “saída limpa” e recuperou a sua soberania.

A narrativa do sucesso irlandês desdobra-se em três argumentos. O primeiro é o de que a Irlanda teve a coragem de fazer um ajustamento como deve ser, assente numa “austeridade inteligente” e numa tenaz redução da despesa, que operou uma redução brutal do seu défice. O segundo é o de que, em virtude disso, a economia irlandesa entrou numa fase virtuosa de crescimento. Finalmente, o terceiro argumento é o de que, cereja no topo do bolo, a “saída limpa”, sem recurso a linhas de crédito europeias, veio atestar a robustez readquirida por uma economia expurgada de vícios e de bolores.

Os três argumentos são três mistificações. Primeiro, a história da redução do défice irlandês está mal contada. O ajustamento irlandês incidiu sobre a dívida gigantesca de um setor bancário exposto aos delírios especulativos dos participantes no seu capital. Foi a mobilização de dinheiro para salvar esses bancos que determinou súbito pico no défice (30,6% em 2010), superior em 20% ao que teria atingido sem essa afetação extraordinária. Jogando pois com os valores de défice efetivo, a realidade é clara: a sua redução foi residual: de 7,6 para 7,5% do PIB em 2013. A dívida pública, essa, apesar da reestruturação com alargamento de maturidades e com juros mais baixos a que foi sujeita – precisamente o que os adoradores do “sucesso espetacular da Irlanda” abjuram para a Grécia ou para Portugal – mantem-se em níveis várias vezes acima dos registados antes da crise.

Em segundo lugar, o argumento de que a Irlanda pós-troika é um caso entusiasmante de crescimento é falso. A não ser que se considere entusiasmante um crescimento de menos de 0,5% do PIB e uma manutenção do PNB abaixo dos valores que tinha há cinco anos atrás…

Finalmente o pós-troika sem necessidade de segurança cautelar. O governo irlandês decidiu correr o risco de, à primeira “indisposição” dos mercados, se ver em apuros. Mas pareceu-lhe isso preferível a aceitar como condicionalidade de um programa cautelar europeu a imposição de uma subida drástica dos impostos, com o IRC à cabeça. Dublin não escolheu, pois, entre um bem e um mal mas entre dois males. O que não escolheu, isso é claro, foi recuperar a soberania. Não o podia fazer porque o ajustamento imposto pela troika trazia acoplado um apêndice imperativo: sob vigilância apertada de Bruxelas, a austeridade vai continuar a ser lei suprema, com cortes de mais de 5 mil milhões de euros nos próximos dois anos a juntar ao tanto que já foi cortado.

O entusiasmo com a estagnação, a satisfação com reduções residuais do défice e a chantagem continuada da austeridade – tudo espremido, o “sucesso espetacular” do ajustamento irlandês é o que dá. Uma saída assim não é limpa, tem o cheiro fétido da dependência e o bolor do impasse.


 
 
pessoas
José Manuel Pureza



 
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