Centro de Estudos Sociais
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30-12-2013        Público    [ pág. 54 ]

Ao longo dos últimos cinquenta anos o mundo assistiu a múltiplas revoltas dinamizadas pela juventude, cujo momento paradigmático terá sido o maio de 1968 em França.

Cinquenta anos após a agitação política e sociocultural da geração dos sixties, fará sentido olhar as mais recentes rebeliões sociais traçando um paralelismo com esse período? O local e o global, o pragmatismo e a utopia, o realismo e o sonho, o individual e o coletivo caminharam juntos no meio de multidões de jovens, ocupando universidades, fugindo da repressão policial e emprestando à ruas e praças um tom simultaneamente dramático e festivo.

Da defesa do ambiente à libertação da mulher, da luta pelo desarmamento à critica da burocracia e dos valores tradicionais, nas universidades de Paris foi a chamada crítica estética e pós-materialista (da luta estudantil e sociocultural) a demarcar-se e a sobrepor-se à crítica social e economicista (do velho operariado, como mostrou o estudo de Boltanski e Chiapello, O Novo Espírito do Capitalismo, 2001), pelo menos no que essas experiências prouxeram de novidade. O 25 de Abril de 1974 em Portugal foi, talvez, a expressão tardia e condensada desses dois tipos de movimentos, onde as dinâmicas de base abraçaram o mesmo desígnio dos atores políticos tradicionais – a “sociedade socialista”. Pode dizer-se que os protestos das décadas de 1960-1970 geraram um efeito de halo, que penetrou os interstícios da democracia representativa e dos valores convencionais, mas que se foi esbatendo ao longo do tempo.

Porém, a nova onda de protestos de finais do século XX recuperou parte das bandeiras daquela época na contestação ao paradigma económico neoliberal e ao novo poder unipolar, após a implosão do modelo soviético. Do massacre de Tiananmen às mobilizações do Leste europeu com a queda do muro de Berlim, dos protestos de Seatle ao movimento zapatista (Chiapas), os encontros do Fórum Social Mundial, o movimento MayDay na Europa, etc., representaram uma viragem no modo como as sociedades e a juventude rebelde pretendiam intervir na esfera pública. Se nos anos sessenta os novos meios de comunicação de massas foram, pela primeira vez, usados estrategicamente pelos ativistas estudantis de então, nos finais dos anos noventa chegava a hora das novas redes sociais e da Internet. Esses meios tornaram-se o principal meio de difusão e de mobilização do chamado ciberativismo global. Apesar dos traços em comum com a anterior geração, as manifestações da viragem do milénio veicularam ainda valores e causas simultaneamente “materiais” (direitos humanos, luta contra as propinas, desigualdades económicas, fome e a doença) e “pós-materiais” (minorias étnicas, religiosas, direitos LGBTs, feminismo e descriminalização do aborto, defesa do ambiente e dos povos indígenas, etc.).

Mais recentemente, com o último ciclo de lutas sociais desde o iníco da crise (Grécia 2008, Primavera Árabe, Europa do Sul/ Indignados, Geração à Rasca, Occupy Wall Street, Que se Lixe a Troika, Chile, Brasil), a juventude escolarizada continuou a animar os “núcleos duros” das mobilizações e a encher as praças da indignação, mas o grosso dos protestos voltou a colocar no centro a questão social e sociolaboral. Em especial na Europa do Sul, o aumento exponencial do volume de estudantes do ensino superior esbarrou no bloqueio das oportunidades. Em vez do cidadão europeu e cosmopolita prometido pelo projeto da UE, a ambicionada “carreira” profissional não foi além de trabalho precário e salário miserável (e desemprego). Mesmo os que foram educados na ideologia do empreendedorismo tecnocrático perderam a esperança numa solução individual e deixaram-se guiar pelo clima de indignação, em alguns casos descontrolado. Nas jornadas de junho, no Brasil, os jovens abandonaram por um momento o habitual individualismo e enfrentaram com coragem a violência policial. Viveram-se fragmentos de intensa comunhão e filiação coletiva, que tiveram um impacto inesperado e resultados visíveis no espaço público.

A última onda de convulsões sociais mostra que as “causas próximas” são em geral muito díspares e difusas, mas os efeitos transcendem as intenções. Na Europa do Sul ou no Brasil os manifestantes não tinham propriamente um programa político, e talvez muitos nem soubessem ao que iam, mas não deixaram de gritar contra a austeridade e reclamar o direito ao futuro. Se na Europa foi a luta pelo emprego e a precariedade, no Brasil, lutou-se por mais democracia, transportes urbanos de qualidade e o fim da corrupção. Em ambos os casos esteve em causa a defesa de um Estado social que funcione, que combata as desigualdades e promova a educação e a saúde pública.

As recentes rebeliões parecem exprimir uma luta de classes sem vanguardas. Na Europa é a revolta da “classe média” proletarizada e à beira da miséria. No Brasil os protestos de junho mostraram uma sociedade que não se satisfaz com um emprego de serviços mínimos (ainda que com estatuto “formal”) e um consumismo fictício, antes se revolta contra a opulência de investimentos faraónicos (os estádios da Copa 2014), exigindo uma saúde e educação “padrão FIFA” e transportes de qualidade. Em comum permanece a rejeição da política institucional, o uso das redes sociais e a desconfiança das instituições. Esta vertigem de mobilizações juvenis não corresponde a uma “tomada de consciência” no sentido clássico, antes reflete uma busca de protagonismo que mistura o individual e o coletivo, onde a esfera pública (virtual) das redes sociais se confunde com o “aqui estou eu” (da foto no Facebook), mas mostra ao mesmo tempo que o “eu somos nós”. E independentemente das intenções, esse nós pode ter muita força.


 
 
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Elísio Estanque