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10-12-2013        Público

Valorizar quem esteve do lado certo da História, contra todas as adversidades, deve implicar julgar também quem podia ter estado e não esteve.

No espaço de meros três dias, a discussão em torno da morte de Nelson Mandela, e de personalidades hoje no poder com um papel aparentemente equívoco durante os últimos anos do apartheid, passou rapidamente da condenação da esquerda para a absolvição da direita.

Numa reação imediata por parte de algumas vozes à esquerda, tanto em Portugal como em Inglaterra, as redes sociais incendiaram-se com acusações infundadas e citações sem fontes, reportando-se a supostas ações e declarações tanto de David Cameron como de Cavaco Silva durante a década de 1980. Afirmações de que Cameron usou crachás a dizer “enforquem o Mandela” ou pertenceu ao topo da liderança da “Federação de Estudantes Conservadores” (FEC), particularmente ativa na defesa do regime do apartheid, ou que Cavaco Silva apelidou diretamente Mandela de terrorista e foi pessoalmente contra a sua libertação foram-se espalhando sem qualquer evidência. Também a Margaret Thatcher foi recusado um papel importante nas negociações com o regime, o que – por mais desprezo que tenha pela sua herança política – é difícil de justificar para quem se queira pautar por um mínimo de honestidade intelectual.

Depois de ter passado os primeiros dois dias a discutir com algumas dessas vozes à esquerda (não todas), tanto cá como em Inglaterra, eis que a direita, numa contra-reação, me liberta desse penoso fardo de andar a defender Thatcher e “Thatcherites” e resolve elevar ao plano da moralidade o posicionamento de Portugal e do Reino Unido nos últimos anos do apartheid.

A história é bastante mais complexa do que me permite um breve artigo. Parte da atuação destes dois países parece dever-se, de facto, a uma percepção errónea de como defender uma comunidade muitíssimo considerável de seus nacionais (e descendentes) em solo sul-africano, cujas vidas importava preservar mas cuja intransigência acentuava a sua vulnerabilidade num contexto que esteve perto de um banho de sangue. Também alguns documentos e declarações que vieram a público parecem indicar que as posições oficiais no seio das Nações Unidas não foram a única orientação diplomática do Reino Unido ou de Portugal. Perante o crescente consenso internacional, a pressão para a libertação de Mandela e o fim do apartheid ter-se-á finalmente sentido nas negociações nos bastidores e com um impacto relevante.

No entanto, reconhecer que Thatcher, ao mesmo tempo que rejeitava as sanções económicas contra a África do Sul, negociava com o Presidente Botha a libertação de Mandela (nomeadamente numa carta datada de 1985), não implica omitir que a ex-líder britânica o fez apesar de si própria e pelas razões erradas. Portugal e o Reino Unido falaram, de facto, mais alto contra as sanções do que contra o apartheid – o que é em si mesmo deplorável. Procuraram fazê-lo porque as sanções prejudicavam os negócios que a África do Sul tinha com os seus respetivos países e porque afetavam diretamente o nível de vida das comunidades brancas sul-africanas que pretendiam defender. Esforçaram-se igualmente por negociar uma transição em que os privilégios das comunidades brancas fossem tocados o menos possível – contribuindo, dessa forma, para perpetuar o sistema de apartheid económico que persiste até aos dias de hoje.

Cameron pode não ter usado o crachá ou liderado a FEC na defesa do regime do apartheid mas participou numa viagem à África do Sul, tão tarde quanto 1989, patrocinada por uma organização que fazia lobby pelo regime, além de partilhar essencialmente do fundamentalismo político e económico desta plataforma que preferiu sempre o anti-comunismo ao anti-racismo – basta olhar para a sua trajetória política e o seu atual governo. O mesmo provérbio “diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és” se aplica a Cavaco Silva. Enquanto primeiro-ministro da altura, pode não se ter manifestado pessoalmente contra a libertação de Mandela mas escolheu alinhar com os EUA e o Reino Unido numa política de interesses, quando o que estava em causa era a oposição a um crime contra a humanidade chamado apartheid. Há, na verdade, muito pouco de moral ou corajoso na posição tanto de Cameron como de Cavaco Silva nessa altura.

Convém igualmente referir que, de um certo ponto de vista, a contradição apontada e bem pela esquerda não deixa de ser ilusória. A atual homenagem destes, e outros, líderes da direita a Mandela não é à herança do herói sul-africano no seu todo. Não abarca o Mandela que, após uma estratégia pacífica e moderada de luta contra o apartheid, liderou efetivamente a resistência armada e fez uso da violência contra o regime. É apenas a homenagem à versão “asséptica” do Mandela do diálogo, da paz e da reconciliação – que, em última análise, acabou por ser compatível com os interesses que defendiam.

As nossas lutas do dia-a-dia não são, de todo, insignificantes. Há, porém, algo de reconfortante na ideia talvez romântica de que, perante uma situação radical de escolha moral, teríamos a coragem de nos comportarmos como um Aristides Sousa Mendes. Valorizar quem esteve do lado certo da história, contra todas as adversidades, deve implicar julgar também quem podia ter estado e não esteve.


 
 
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Teresa Almeida Cravo



 
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