A voz trémula da gravação em português, nos voos da Iberia, é todo um programa. Depois do vozeirão do capitão em castelhano, e do inglês massacrado sem remorso, o som da menina aterra-nos poeticamente em Portugal. Queríamos talvez que não fosse assim. Uma União Ibérica? Sim, com a Espanha como região autónoma de Portugal. Estamos no VIII Docomomo Ibérico, reunido em Málaga. Não há nada como um bom seminário: as ponências, os crachás, os cartões-de-visita oferecidos furtivamente, os sacos e os mapas, as boas-vindas nos hotéis, os jantares protocolares. Para os professores, investigadores e estudantes, é fazer pela vida.
Aqui, no entanto, não me queixo. Fala-se de arquitectura-arquitectura. O Docomomo é uma organização especial, visa a “documentação e conservação” de edifícios do “movimento moderno”. É retrofuturista. Patrimonializa o moderno. Moderniza o património.
Muitas vezes o tom é angustiado; a falta de consideração das pessoas ou dos poderes públicos por determinada fábrica ou por um cinema abandonado pode chegar a arrepiar. Às vezes melancólico, é um clube feito de pessoas boas, que genuinamente gostam das suas cidades e que dedicam a sua vida à hipotética vida de edifícios mal-amados. É comovente essa dedicação. Embora também possa enfurecer e suscitar pensamentos heréticos: “O melhor, então, será mesmo demolir”, já me ocorreu silenciosamente.
No Docomomo Brasil, já assisti a discussões de vida ou morte sobre algumas nuances da relação entre o modernismo de São Paulo e o carioca. Em Málaga, reencontramos Victor Pérez Escolano, fluente em sabedoria e inteligência “momo” e tudo o resto. Represento a parte rectangular da Ibéria com o Gonçalo Canto Moniz, dedicado investigador e amigo.
Presidente do Docomomo Internacional desde 2010, Ana Tostões encerra o encontro. Este importante cargo não foi devidamente notado a seu tempo. O trabalho da Ana em Portugal foi pioneiro ao cruzar metodologias historiográficas com o olhar do arquitecto, fazendo sentido de leituras que estavam dispersas a Norte e a Sul. Este prestigiante lugar é inteiramente merecido porque, além do mais, sendo uma estudiosa da arquitectura moderna, conhece o antes e o depois suficientemente bem para não se enredar na afición, que sem dúvida sente.
Como a Ana diz, nós, os portugueses, temos de ser muito bons: falamos todas as línguas; e inventamos, a rir, a língua do desenrascanço. A Ana ri-se, e fala-nos em castelhano e inglês impecável, liderando com reconhecimento global o Docomomo Internacional; que inclui dezenas de países, entre os quais o Irão. Haverá arquitectura moderna no Irão? Uma coisa é certa: há uma portuguesa à frente do Docomomo, que “documenta” e “conserva” edifícios construídos desde que o betão começou a levantar paredes, e até antes.