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29-11-2013        Diário de Notícias

Os ricos vivem da existência de pobres. Os poucos muito ricos vivem da existência de muitos muito pobres. Em 1654, o Padre António Vieira disse-o de forma frontal e imorredoura: "Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande."

Esta semana, 360 anos depois do sermão de António Vieira aos peixes, o mesmo país que o expulsou por ser uma voz incómoda para os poderes instalados tomou conhecimento de que, em pleno coração da crise que está a condenar vidas em série ao desespero, as 25 maiores fortunas portuguesas foram valorizadas em 16% ao longo do último ano. Elas somam atualmente 16,7 mil milhões de euros, 3,3 mil milhões mais que o ano passado. 25 fortunas valem hoje 10% do produto nacional, 1,6% mais que há um ano. Estes números ensinam-nos três coisas sobre este momento da vida do país.

A primeira é a de que, entre nós, a riqueza tem uma base cada vez mais especulativa e improdutiva. Américo Amorim, o homem mais rico de Portugal, tinha perdido a liderança das fortunas no ano transato. Pois bem, foi a subida vertiginosa do valor das ações que detém no Banco Popular, na Galp Energia e na corticeira com o seu nome de família que fez com que a sua riqueza duplicasse num só ano. Soares dos Santos, Guimarães de Mello e Belmiro de Azevedo, que se seguem no ranking a Américo Amorim, têm fortunas alicerçadas também na distribuição, na banca e nos movimentos em mercados financeiros, não na produção ou transformação de bens.

O segundo ensinamento é o de que no Portugal da crise há milhões estão a ser condenados a perder o pouco que têm e há uns poucos que estão a aumentar o muito que já tinham. Os 3,3 mil milhões acrescentados à riqueza de 25 pessoas em Portugal num ano mostram à evidência que a pergunta insistente a quem exige um caminho alternativo á austeridade – “sim, mas onde é que vai buscar o dinheiro?” – deve ser feita, e cada vez mais, a quem acha que a austeridade é o caminho, sob a forma de “pois, mas para onde é que vai o dinheiro?”.
O terceiro ensinamento é o de que a riqueza em Portugal está cada vez mais concentrada, ao mesmo tempo que a pobreza está cada vez mais disseminada. Em Portugal a pobreza democratiza-se, ao passo que a riqueza se aristocratiza a cada momento que passa. A história dos 25 que hoje dominam a riqueza do país é feita de combate á concorrência (e não do seu reforço), de luta por posições monopolistas (tantas vezes com a cumplicidade do Estado), de fusões e tomadas de capital – frequentemente acompanhadas de cruzamentos familiares efectivos – tanto intra como intersectoriais. Não há em Portugal, nunca houve, capitalismo popular, ele é um embuste.

Na semana em que o Governo aprovou o orçamento mais agressivo das pessoas de que há memória no tempo da nossa democracia, ficámos a conhecer o rosto e o nome de quem está a ganhar mais com esta política. Essa coincidência no tempo traz-nos de volta a reflexão incómoda do Padre António Vieira: “A diferença que há entre o pão e os outros comeres é que para a carne há dias de carne, e para o peixe dias de peixe, e para as frutas diferentes meses do ano; porém, o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos."


 
 
pessoas
José Manuel Pureza



 
temas
milionários    pobreza    riqueza    austeridade