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23-09-2013        Público

A máscara de Guy Fawkes, que se vulgarizou através do filme V de Vitória, tornou-se, nos últimos tempos, o símbolo de grupos radicais como os Anonimous e os Black Blocs, entre outros. Para além do significado político desses grupos - e de podermos questionar as formas e o conteúdo ideológico das suas ações - trata-se aqui de pensar sobre as motivações que estão na génese dessas mobilizações, envolvendo em especial a juventude escolarizada. Numa sociedade mediatizada, onde o simulacro e a representação se confundem com a realidade (e, afinal, lhe dão substância), onde as máscaras, a dissimulação, o narcisismo e a estética do "sujeito" anónimo se revertem em contaminação "viral" através das redes sociais, qual o potencial sociopolítico das novas formas de ativismo e participação juvenil?

No Carnaval brasileiro a tradicional "mascarada" (com origem no Entrudo europeu) transmutou-se de inversão subversiva de papéis entre o povo e os poderosos para uma ostentação em bloco da cultura de raiz popular e da "irreverência padronizada", sob a forma de uma exibição massificada que marca o ritmo do país nesse período. Mas a proliferação das máscaras "fawkianas" nos últimos tempos, nas manifestações e protestos públicos, veiculam traços de natureza distinta e paradoxal, onde o impulso para a uniformização, sob o manto de um coletivo anónimo, supostamente subversivo e radical, esconde porventura a presença crescente do individualismo e do narcisismo juvenil mais ingénuo. O filho de um amigo meu foi detido por uma noite na esquadra da polícia em São Paulo por ter sido apanhado junto de uma dessas "tribos" dos Black Blocs que, no regresso da manifestação, partia montras de instituições bancárias. Curioso é o caso de uma sua companheira de ocasião, adolescente como ele, que se entreteve a tirar fotos de si mesma com o seu iPhone, as quais serviram depois de prova dos seus próprios atos a estilhaçar montras. Ou seja, entre o suposto anonimato (da máscara ou do lenço que cobre o rosto) e o exibicionismo do "eu estou aqui!" parece residir a dupla lógica de uma sociedade que individualiza, que exacerba o risco e a impessoalidade, ao mesmo tempo que fragmenta a identidade coletiva, que rouba a esquina da rua e o beco suburbano, oferecendo, em vez disso, a coletividade fictícia da Internet, tornada o espaço onde todas as vaidades se podem expandir, onde as máscaras que cada um veste se projetam numa comunhão imaginada, que se reforça na rua, enquanto palco de conflitualidade coletiva e ao mesmo tempo a grande montra de performance individual.

Vivemos numa época de risco e incerteza onde "a geração que vive pior que os seus pais" parece despertar para a necessidade urgente de afirmar a sua marca no espaço público, ainda que não consiga compreender o que é de facto o "espaço público". A geração que já nasceu em democracia não quer saber de política, porque os seus pais fizeram política até à exaustão, inebriando-se de ideologia até na esfera privada e familiar. Porque na ressaca da luta política a geração dos pais foi "fazer pela vida", enquanto a escola dos filhos lhes passou a ideia de que tudo depende do "saber técnico". Com muitos diplomas e titulos escolares - e talvez a ajuda de um amigo do pai - as credenciais académicas faziam as vezes do "empreendedorismo". Só depois da desilusão é que aquela palavra (empreendedorismo) ganhou estatuto de nova ideologia. E quando os problemas do (des)emprego e da pobreza começaram a bater à porta, a geração dos antepassados levantou as velhas bandeiras (mesmo que já rotas, desbotadas e sem cor) e os mais jovens, ainda atordoados pelo minguar repentino da mesada, apressaram-se a acorrer ao dicionário (ou à wikipédia) em busca do significado da palavra "futuro". Em lugar do sinónimo depararam-se com o vazio; mas, após muita persistência, lá vislumbraram: "incerteza", "desemprego" ou "desespero".

Nesse processo, o espaço privado começou a revelar buracos negros e barreiras que negavam a realização do desejo hedonista mais inofensivo. Com a chegada da crise, a Europa foi assaltada por ansiedades súbitas e os filhos da classe média foram, finalmente, empurrados para a rua. Enquanto isso ocorria no Sul europeu, na América Latina, era o Brasil que começava a erguer a bandeira do consumo, e o canto de sereia da "nova classe média" ganhava adesões no país. Porém, no atabalhoamento ansioso desse processo, os bloqueios e a corrosão institucionais, a consciencialização dos direitos e a manipulação dos média empurraram milhões para as ruas contra o atual poder. Se o clímax dos movimentos de junho evidenciou as contradições, problemas e perplexidades das gerações mais jovens, a reconfiguração subsequente dos protestos de rua veio pôr em evidência a presença das máscaras e o radicalismo dos Black Blocs e outros. Resta saber quem levará a melhor entre a contestação radical, a violência das políticas "austeritárias", a viabilidade dos programas desenvolvimentistas e a capacidade reformista das instituições democráticas. Seria bom que, para a Europa e para o Brasil, houvesse espaço para novos caminhos emancipatórios.


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
temas
redes sociais    trabalho    radicalismo