Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
19-09-2013        Visão

A defesa dos direitos de cidadania nunca foi tão urgente quanto hoje, num contexto em que os direitos mais básicos estão a ser violados de forma brutal e hipócrita. O “bem-estar” coletivo “concedido” aos portugueses pelos aventureiros no Governo não é mais que a soma do mal-estar que infligem a 99%  da população. Em face disso, talvez cause estranheza que eu me dedique a salientar os deveres dos cidadãos. Somos parte de uma cultura que privilegia direitos em detrimento de deveres, o que parece insensato, pois é evidente a simetria entre direitos e deveres: qualquer direito é uma miragem, se lhe não corresponder o dever de alguém assegurar que o direito seja exercido. Uma das razões para tendermos a falar mais de direitos do que de deveres reside em que nas democracias se assume que o dever de garantir a vigência dos direitos pertence ao Estado e que cabe aos cidadãos apenas fruir e defender os seus direitos. E o que ocorre quando o Estado deixa de cumprir esse dever, como acontece agora? Cabe aos cidadãos o dever coletivo de defender os direitos por todos os meios pacíficos ao seu alcance.

Longe de ser um dever abstrato, é um dever concreto e situacional. O seu exercício acarreta riscos porque, quando o Estado se demite do seu dever, as instituições são vítimas de uma patologia insidiosa: estão vigentes mas dedicam-se a realizar a missão contrária àquela para que foram criadas. É assim que o Estado social se converte em Estado anti-social e a segurança social, em insegurança social. Por esta razão, o dever dos cidadãos tem muitas vezes de ser exercido fora das instituições e, quando exercido dentro delas, assume um caráter de contra-corrente que exige coragem e determinação. Passo a exemplificar situações e deveres específicos de grupos de cidadãos. Os cidadãos juízes e magistados do MP têm o dever de fazer cumprir os direitos até ao máximo da sua jurisdição. Num Estado democrático, o tipo de destruição dos direitos atualmente em curso só foi possivel no passado mediante a instauração da ditadura, como, por exemplo, no Chile há quarenta anos. Só cumprindo este dever não terá um dia o poder judicial de pedir desculpa aos portugueses por ter faltado ao seu dever, como aconteceu recentemente com os magistrados do Chile e da Argentina. Os cidadãos militantes do PS têm o dever de se revoltarem contra uma liderança incapaz de projetar uma visão do país e da Europa para além do inferno neoliberal, pusilânime ao ponto de parecer só querer o poder se lho derem e de não o conceber com nenhum rasgo que o distinga do poder que está no poder. Urge um congresso extraordinário depois das eleições autárquicas em que os socialistas revoltados possam também  dizer ao cidadão António Costa que em política há crimes que se cometem por omissão.

Os cidadãos ativistas de sindicatos, movimentos sociais e organizações da sociedade civil  têm o dever de se unir em protestos intensos e perturbadores para os aventureiros no poder. Unir-se como se a democracia, hoje agonizante, morresse amanhã e, caso não se tivessem unido, se lamentassem de só terem tido a vontade de se unir depois de deixarem de ter poder para o fazer. Os cidadãos intelectuais públicos têm o dever de defender a dignidade de todos os portugueses, mesmo contra os interesses poderosos que os querem seduzir, e o dever de mostrar que a dívida é impagável e que a austeridade e o neoliberalismo são as mãos que tiram o dinheiro dos bolsos dos pobres e das classes médias e o enfiam nos bolsos dos ricos e super-ricos. Os cidadadão autárquicos têm deveres específicos a cumprir nas próximas eleições. Os da minha cidade, Coimbra, têm o dever de punir exemplarmente o PS pela incapacidade de renovar a sua liderança e por insistir num candidato medíocre que durante dez anos entregou a cidade à voragem do imobiliário e à poluição de resíduos tóxicos (co-incineração). Finalmente, os cidadãos  no seu conjunto têm o dever de vir para a rua e dar voz à sua aspiração de uma democracia diferente para uma vida decente. E o dever de ficar na rua até que os políticos venham ouvir. Quando deixarmos de ir aos comícios deles e eles vierem aos nossos, talvez eles comecem a pensar seriamente em representar-nos.


 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos