O ódio contra a esquerda tem uma nova moda: acusar a esquerda de odiar. Com intensidades diferentes, instalou-se para os lados da direita uma barragem discursiva que recrimina à esquerda a suposta responsabilidade de estar a crispar a vida política portuguesa, de demonizar sem tolerância, de, no limite, obedecer a um DNA de eliminação do outro diferente. Não me detenho em nenhum dos escritos concretos que deram voz nos últimos dias a esta ofensiva para não gastar espaço com minudências. E muito menos cuidarei da relação mal resolvida de alguns dos seus autores com os fantasmas do seu passado. Quero ir ao que realmente importa: os dois traços mais marcantes desta nova – e afinal tão velha – retórica moral da direita.
O primeiro é o do branqueamento da História. A direita tem história atrás de si, como a esquerda a tem. Cada um aceita e honra as heranças que quer e faz as ruturas que faz. Pelo meu lado, sei que quer a desumanidade das engenharias sociais de qualquer natureza quer o cinismo da ausência de poder regulador que sanciona a exclusão de quem não tem poder estão ambas no avesso de toda a emancipação. E sei, por isso, que a esquerda não pode ser complacente nem com uma nem com outra. Ou não será esquerda. Quanto à direita, essa que agora brande as espadas do humanismo tolerante e liberal – com a maior e mais violenta das intolerâncias, sublinhe-se – tem na sua genealogia recente desumanidades gigantescas, desde o colonialismo à preservação guerreira de poderosos interesses económicos onde quer que seja, passando pela desregulação produtora de miséria e de desespero em massa. São heranças que não são disfarçáveis e que ou se aceitam ou se repudiam.
Mas, para lá das heranças alheias do passado, há os comportamentos próprios do presente. A direita que critica, como virgem ofendida, a demonização de adversários políticos individuais, pratica convictamente a demonização anónima de massas humanas. Tirar-lhes o nome e o rosto – como aos funcionários públicos acusados de serem o cancro da sociedade por não aceitarem ser despedidos, ou aos pais acusados de, pela sua resistência à retirada de direitos, serem os carrascos do mundo do trabalho dos filhos, ou aos beneficiários de políticas de combate à pobreza, referidos como preguiçosos, vigaristas e párias da sociedade – é aliás elemento maior dessa brutalidade. Brutalidade contra um é horror, brutalidade contra muitos sem nome e sem rosto é “a difícil arte de governar”. Essa é a cínica perspetiva moral da direita.
O segundo traço deste discurso moral da direita é o descaramento. No preciso momento em que a direita carrega sem piedade sobre as vidas já quase impossíveis da esmagadora maioria das pessoas, em que atira desapiedadamente para o desespero trabalhadores, pequenos empresários e reformados sacrificando-os à salvação de bancos com administrações irresponsáveis e ruinosas, em que empurra para a emigração milhares de jovens altamente qualificados, em que envolve todas estas suas escolhas de penalização dos mais frágeis no celofane da inevitabilidade e da racionalidade gestionária, neste preciso momento, a direita vem reivindicar a sua nobreza de sentimentos e a conveniência de reações suaves e fleumáticas. Ao transformar as pessoas em objetos de experimentação de receitas ideológicas de redenção social e económica – para mais, quando estas já provaram que resultam justamente no contrário do que anunciam – exercendo sobre elas uma violência imensa, só por suprema ironia a direita pode clamar por política de salão como resposta.
Sou dos que, com Mia Couto, acredita que “contra factos só há argumentos”. É essa tenacidade de argumentar e de resistir aos factos que quer consumados que a direita não perdoa. Chama-lhe arrogância. Eu chamo-lhe lucidez.