Passos Coelho alertou o País para o grave risco de a Constituição ser aplicada a sério. Risco de monta porque impediria a entrada em vigor do próximo pacote de diplomas legais do Governo sobre a desvalorização económica e social do trabalho, incluindo o aumento da jornada de trabalho e a autorização dos despedimentos em massa na função pública sob o disfarce semântico de "requalificação". Sem surpresa, a teoria do "risco constitucional" é o sucedâneo atual da tese das "forças de bloqueio", criada, com espírito idêntico, pelo atual Presidente da República quando chefiava o Governo. Ambos - e as respetivas teses - evidenciam ter da democracia uma visão enfadada quando ela impõe limites a uma governação em estilo mãos livres.
Em primeira linha, o alerta de Passos Coelho para o "risco constitucional" foi uma expressão de pressão óbvia sobre os juízes do Tribunal Constitucional, para memória futura. Mas, mais do que isso, a teoria do "risco constitucional" de Passos Coelho dá voz ao que a direita pensa sobre a Constituição - ela é um perigo. Acima de tudo porque, não podendo ser ignorada, a invocação da Constituição exige, a cada momento, uma resposta clara a uma pergunta decisiva: o regime político em que vivemos é ainda o da democracia criada no bojo do processo de transformação social, política e económica que teve no 25 de Abril de 1974 o seu momento fundador ou é outra coisa? Por outras palavras, ao qualificar a Constituição como um risco para as suas iniciativas (des)reguladoras, a direita explicita como seu propósito último o de situar Portugal num tempo pós-constitucional. E por ser pós-constitucional este regime insinuado pela direita na sua teoria do risco é matricialmente pós-democrático, no sentido em que a democracia deixa de ser um modo de organização social e económica e passa a ser exclusivamente uma técnica de legitimação formal da relação de forças momentânea na sociedade. Em boa verdade, portanto, a teoria do risco constitucional é uma teoria do risco democrático porque é esse horizonte de democracia densa e não apenas litúrgica que a direita repudia como o diabo repudia a cruz.
Não é outro o sentido da retórica estafada do minimalismo constitucional que a direita sempre usa nestas ocasiões. Os argumentos do sobredimensionamento da Constituição e da sua sobrecarga ideológica são uma espécie de espelho: a direita quer alegadamente uma constituição pequena e sem ideologia. Com um senão: não existe vazio ideológico. A aspiração a uma constituição que nada diga de concreto sobre os contornos e a intensidade do regime democrático nas condições específicas de uma sociedade como a nossa, a aspiração a uma constituição que se limite a estabelecer basicamente o mesmo que estabelecia a Constituição de 1822, eis a forma que a direita tem de dizer que quer uma constituição que se limite a pôr um carimbo na sua superioridade eleitoral momentânea.
O risco, para a direita, não é a referência preambular ao "caminho para o socialismo". O seu problema é o "risco" que representa a existência de um meta-programa constitucional superior aos programas momentâneos das maiorias momentâneas, que lhes dê um sentido de regime e que haja juízes que ousam escrutinar o cumprimento desse programa. Ao velho sonho da direita - uma maioria, um governo, um presidente - junta-se agora mais um elemento: juízes carimbadores no Palácio Ratton. Porque a teoria do risco constitucional é afinal uma confissão do primeiro-ministro: a de que, mais do que o risco de não cumprir a Constituição, ele tem a certeza de que o Governo não a cumpre.